sexta-feira, 25 de maio de 2012


Sou a sua escrava!
Me entrego e te seduzo,
Me dominas!
Me subjugas!
E acorrentada imploro: Ama-me!.
Me instiga, faça-me doer o corpo.
Seja meu meu Dono, prenda-me!
Obtenha-me por pouco,
Faça do meu ser o teu reflexo. Detenha-me!
Faça-me a tua criação.
Leve-me para tua cama. Use-me!
Sou sua, escrava e propriedade,
Seja meu dono, meu Mestre,
Seduza-me e me deixe louca.
Deixa-me desfeita, deixa-me marcada,
Me possua, me obrigue, me ame,
Tira-me do anonimato
Sou tua, tua escrava, tua paixão.
De-me a sua marca de sedução!

de sua escrava {ametista}
Quero-te sempre submissa
Minha, nua e despida
Sem roupa nenhuma   
Sem nenhum preconceito
Quero-te sempre escrava
Atada, amarrada, algemada
Sem mãos para poder me tocar
 
Quero-te transpirando
Sedutora e provocante
Fazendo-me te amar
Por deixar-te dominar
Quero todo o teu corpo
Para dele fazer teu cárcere
Nele deixar minhas marcas
A cor da minha propriedade
Quero tua pele vermelha
Teus seios envolto em cordas
Tuas mãos algemadas às costas
Teus olhos me dando respeito
Na tua nudez submissa
És totalmente minha
Eu sou o teu Rei
Eu sou o teu Dono
Prisioneira és do meu prazer!
 

 

mymasterknowsbest:

Quite!
 ENTRANDO EM MEUS DOMÍNIOS

comigo você so tem bilhete de
entrada

comigo
nao tera mais
saida

sera presa
acorrentada
sera so minha

sucumbira as
minhas
taras, manias

sera a
submissa
ao meu
prazer

sera
acorrentada
escravizada

tera prazer
como nunca teve
ou pensou ter

sereI o dono
do seu corpo
do seu ser

sera minha
teras meu amor
meu castigo

nao sei
se Irá suportar

então pense bem
se é isso que quer

entao cuidado
ao entrar
derrepente nunca mais
podera voltar


Sou um caçador
estou em seu encalço

não adianta fugir
ou tentar se esconder
irei te abater

te caço no bréu da noite
sob o olhar da lua
te caço na luz do dia
na minha poesia

o vento traz teu cheiro
como um cão perdigueiro
farejo teu cio de fêmea

és fera felina mulher
seus pelos ficam atiçados
presentindo minha chegada

sua boca escancarada
suas presas afiadas
com as garras levantadas
tentas me intimidar
mais de nada vai adiantar
porque eu vou te caçar

com cordas, amarras e laços

com a minha arma-dura
estou a tua procura
armadilhas vou preparar
sou um caçador vadio
te caçoem matas
ruas e rios

minha boca salivando
com meu faro aguçado
nessa caçada do desejo
vou laçar essa felina
prende-la
com correntes
em poemas

e quando estiver
em meu poder
essa fêmea vou
comer

minha fera do prazer

AMARRAS

Amarrada em mim estas
presa
puta
indefesa

sem reação
atada
em mim
no
laços
no
pescoço
pernas
braços

a minha mercê
mulher
escrava
serás
açoitada
violada
violentada

beijada
sugada
lambida

esta é sua pena
bandida
que terá que
cumprir

pois ousou se apaixonar
por mim


Estalas os dedos
e vem aqui
senta no meu colo
se conforta
no meu corpo
que está num abraço
de um só laço
beija-me
esqueça
o tempo
a hora
o lugar
e só comigo
você está


Pego em tua mão
aperto...
Sinto o tremor
não fique nervosa
sou eu, o teu amor
teu Dono e Senhor

quinta-feira, 24 de maio de 2012


Hoje,
Eu quero te despir e te possuir
Como um louco apaixonado...
Quero minhas mãos passeando
Em toda a extensão do teu corpo
Quero te olhar, te beijar, te morder
Te amar e gozar da forma mais
intensa que o meu ser permitir.

Quero beijar e sugar os teus seios
Quero apalpar e apertar tuas nádegas
Quero lamber cada centímetro do teu corpo
Quero te enlouquecer
Sugando a tua vulva molhada
E ingerindo a essência dos teus desejos

Hoje eu quero
Te deixar enlouquecida de prazer
Com beijos e caricias alucinantes
Quero te levar as estrelas e
Te mostrar o infinito.
E ao final desta jornada,
Feliz por ter te amado
Quero te ver extasiada
Dizendo que eu sou
O teu único e verdadeiro amor
e que, em tua vida, jamais encontrarás
alguém que tenha a capacidade de
te amar mais do que eu.


Madrugada quente...
Quarto, artificialmente, frio...
Insônia cruel dominando a minha mente.

Fecho os olhos e me perco numa estrada
onde tenho a doce visão do teu rosto

Imagino teus beijos
e um alento invade a minha alma

Sinto teus lábios úmidos unindo-se aos meus
Enlouqueço com o serpentear
da tua língua buscando a minha saliva
Aqueço-me no calor do teu corpo
e navego na maciez da tua pele
Ouço o pulsar do meu coração em batidas descompassadas

A paixão me invade
e o desejo de te amar me domina

Sussurro, em teu ouvido, delírios de amor e paixão
Teu hálito quente prenuncia um orgasmo
O rubor de tua face me enlouquece
O clímax do nosso amor acontece
Ejaculo delirando de prazer

O telefone toca...
Abro os olhos e não te vejo...
Atendo na esperança de ouvir tua voz...
É o serviço de despertador anunciando que o dia amanheceu

Volto a realidade...
Percebo, enfim,
Que passei mais uma noite
Amando-te na minha eterna solidão.
De sua submissa
{Ametista}



Loucuras secretas
Quero cometer loucuras, nossas loucuras secretas, só nossas.
Não quero ter hora nem local , não quero parar pra pensar, só quero sentir a paixão envolvida pelo perigo, a emoção e marcas na nuca.
Vamos ser loucos, vamos fazer amor sem parar em qualquer lugar, deixando e instinto nos guiar, sem limites, sem regras, sem juízo.
Quero sentir suas mãos trêmulas, apressadas e despindo o meu corpo, e acariciando e meu rosto,seus lábios macios, molhados,delicados, a minha pele e
seduzindo a minha razão.
Quero sentir seus olhos se fechando,seu fôlego se acabando e seus sussurros se perdendo.
Quero fazer o que jamais foi feito, e só ter a paixão como testemunha.
Você me deixa maluco, tenho vontade de rasgar sua roupa, e deixar marcas de prazer e suicidar sua boca.
Quero que você me tire do sério, seja a minha insanidade, deixa completamente louco, amante e amado...

Dois amantes felizes não tem fim nem morte,
nascem morrem tanta vez enquanto vivem,
são eternos como é a natureza.

Tudo começou com um toque de lábios
Um roçar de pernas e de mãos
O corpo entrou em combustão
E o fogo se alastrou
Incendiando a boca
Ganhando proporções loucas
À medida em que me beijavas

Ao revelar o caminho da luxúria
Mexeu com os sonhos de prazer
Liberou o som dos delírios
Despertou desejos adormecidos
Sacudiu os sentidos
Me fez enlouquecer
Incendiando de vez o coração

Agora, passada a fúria
Controlada a loucura
Deixa-me seguir teus passos
Quedar-me em teus braços
Colocar no teu sorriso
Mais alegria, mais emoção
Ser teu fogo, tua paixão



Teu calor em minha pele...

O gozo percorrendo nossos corpos suados

Exaustos,
Sedentos de quero mais.

BDSM

BDSM é um acrônimo para Bondage e Disciplina, Dominação e Submissão, Sadismo e Masoquismo. O BDSM tem o intuito de trazer prazer sexual através da troca erótica de poder, que pode ou não envolver dor, submissão, tortura psicológica, cócegas e outros meios. Por padrão, a prática é provocada pelo(a) Dominador(a) e sentida pelo(a) Submisso(a). Muitas das práticas BDSM são consideradas, num contexto de neutralidade ou não sexual, não agradáveis, indesejadas, ou desvantajosas. Por exemplo, a dor, a prisão, a submissão e até mesmo as cócegas são, geralmente, infligidas nas pessoas contra sua vontade, provocando essas sensações desagradáveis. Contudo, no contexto BSDM, estas práticas são levadas a cabo com o consentimento mútuo entre os participantes, levando-os a desfrutarem mutuamente. O conceito fundamental sobre o qual o BDSM se apóia é que as práticas devem ser SSC (São, Seguro e Consensual). Atividades de BDSM não envolvem necessariamente a penetração mas, de forma geral, o BDSM é uma atividade erótica e as sessões geralmente são permeadas de sexo. Em geral o limite pessoal de cada um não é ultrapassado, apesar de pedir para o dominador parar não adianta pois faz parte, para esse fim é utilizada a SAFEWORD (palavra de segurança)[1] que é pré-estabelecida entre as partes.



                 A   História                                                                                
      de “O”











PREFÁCIO - A FELICIDADE NA ESCRAVIDÃO

Uma revolta em Barbados

Uma singular revolta ensangüentou, no correr do ano de mil oitocentos e trinta e oito, a tranqüila ilha de Barbados. Cerca de duzentos negros, tanto homens como mulheres e todos recentemente promovidos à liberdade pelos Decretos de março, vieram uma manhã pedir ao seu antigo senhor, um certo Glenelg, que os retomasse como escravos. Foi feita a leitura do caderno de queixas, redigido por um pastor anabatista que os acompanhava. Em seguida, engajou-se a discussão. Mas Glenelg, fosse por timidez, por escrúpulos ou simplesmente por medo das leis, recusou-se a se deixar convencer. Por isso, a princípio foi gentilmente empurrado, e depois massacrado com toda a sua família pelos negros que nesta mesma noite voltaram às suas cabanas, às suas tagarelices e aos seus trabalhos e rituais de costume. O caso pôde ser rapidamente abafado graças às diligências do Governador Mac Gregor, e a Libertação seguiu seu curso. Quanto ao caderno de queixas, nunca mais foi encontrado.

Às vezes penso neste caderno. É provável que, ao lado das justas queixas referentes à organização das casas de trabalho (workhouse), à substituição da prisão pelo chicote e à proibição feita aos “aprendizes” _ como eram chamados os novos trabalhadores livres _ de ficarem doentes, contivesse pelo menos o esboço de uma apologia da escravidão: como, por exemplo, a observação de que as únicas liberdades às quais somos sensíveis são aquelas que jogam o outro numa servidão equivalente. Não se encontra um homem que se alegre apenas por respirar livremente. Se, por exemplo, obtenho o direito de tocar alegremente o meu banjo até as duas horas da manhã, meu vizinho perde a liberdade de não me ouvir tocando banjo até as duas da manhã. Se consigo chegar a não fazer nada, meu vizinho deverá trabalhar por dois. E aliás, como se sabe, uma paixão incondicional pela liberdade certamente provocará no mundo, e bem depressa, conflitos e guerras não menos incondicionais. Acrescente-se que o escravo estando destinado, graças à Dialética, a tornar-se por sua vez senhor, estaríamos sem dúvida errados em querer precipitar as leis da natureza. Acrescente-se, enfim, que não deixa de haver grandeza e inclusive alegria em abandonar-se à vontade de um outro (como acontece com os apaixonados e os místicos) e em ver-se, enfim! aliviado de seus prazeres, interesses e complexos pessoais. Em resumo, este pequeno caderno representaria hoje, mais ainda do que há cento e vinte anos, uma heresia: um livro perigoso.
É de uma outra espécie de livros perigosos que se trata aqui; precisamente, dos eróticos.

Decisivo como uma carta


Aliás, por que são chamados perigosos? Isso é no mínimo imprudente, pois como no sentimos geralmente corajosos, parecem convidar-nos a lê-los e a nos expormos ao perigo. E não é sem motivo que as Sociedades de Geografia aconselham aos seus membros que nos relatórios de viagens não insistam sobre os perigos passados. Não se trata de modéstia, é para não tentar ninguém (como se vê pela facilidade das guerras). Mas que perigos são esses?

Há um pelo menos que da minha posição posso perceber muito bem. É um perigo modesto. A História de O evidentemente é um desses livros que marcam seu leitor _ não o deixando, sem tê-lo antes transformado parcial ou completamente e que, curiosamente, misturam-se com a influência que exercem transformando-se por sua vez. Após alguns anos, não são mais os mesmos livros, de forma que as primeiras críticas tornam-se logo um pouco simplórias. Mas não importa, um crítico nunca deve hesitar diante do ridículo. O mais simples nesse caso é confessar que não sou muito competente. Vou percorrendo estranhamente a história de O, como se fosse um conto de fadas _ todos sabem que os contos de fadas são os romances eróticos das crianças _ como nesses castelos feéricos que parecem completamente abandonados mas onde, entretanto, as poltronas com seus couros, os tamboretes e os leitos de colunas não têm um grão de poeira e onde já encontramos as chibatas e os chicotes; eles aí estão, se posso dizer assim, como se estar aí fosse próprio de sua natureza. Não há suspeita de ferrugem nas correntes, nem de umidade nos azulejos de todas as cores. Se há uma palavra que imediatamente vem ao meu espírito quando penso em O é a palavra “decência”. É uma palavra que seria muito difícil justificar. Passemos. E como este vento que corre sem parar, que atravessa todos os cômodos, também sopra em O algum espírito, sempre puro e violento, sem descanso e sem mistura. É um espírito decisivo ao qual nada atrapalha: nem os suspiros em meio aos horrores, nem o êxtase em meio à náusea. E tenho que confessar ainda que meu gosto em geral vai para outro lado: gosto das obras em que o autor hesita; em que mostra, por uma certa dificuldade, que o assunto inicialmente o intimidou; quando pensa que talvez nunca conseguisse dominá-lo completamente. Mas a História de O é conduzida do início ao fim, como uma ação de impacto. Faz pensar mais num discurso do que numa simples efusão; numa carta, mais do que num diário íntimo. Mas uma carta endereçada a quem? O discurso, a quem quer convencer? E a quem perguntar isso? Nem mesmo sei quem você é.

Que é uma mulher, não tenho dúvidas. Não tanto pelos detalhes que tanto lhe agradam dos vestidos de cetim verde, das presilhas e das saias tantas vezes levantadas, “como um cacho de cabelos preso por um grampo”. Mas eis por que: no dia em que René a entrega a novos suplícios, O guarda suficiente presença de espírito para observar que os chinelos de seu amante estão gastos e que será necessário comprar outros. E é isto que me parece quase inimaginável. É isto que um homem nunca teria encontrado, ou que, em todo o caso, nunca teria ousado dizer.

E no entanto O expressa, à sua maneira, um ideal viril; viril, ou pelo menos masculino. Finalmente uma mulher que confessa; mas que confessa o quê? Aquilo que as mulheres em todos os tempos se proibiram (mas nunca mais do que hoje), e que os homens de todos os tempos têm lhes solicitado: que não deixem de obedecer ao seu sangue; quando nelas tudo é sexo, até mesmo o espírito. Que se deveria constantemente alimentá-las, lavá-las, Que tudo o que necessitam é de um bom senhor, que entretanto desconfie de sua bondade: pois para se fazerem amar por outros, são capazes de usar toda a animação, a alegria e a naturalidade que devem à nossa ternura, desde o momento em que a declaramos. Enfim, que se deve levar um chicote quando se vai ao seu encontro. Poucos são os homens que não sonharam  possuir uma Justine. Mas nenhuma mulher, que eu saiba, tinha ainda desejado ser Justine. Em todo caso, não em voz alta, com esta altivez do gemido e das lágrimas, com esta violência conquistadora, com esta avidez pelo sofrimento e com esta vontade feita de uma tensão que leva ao dilaceramento e à desintegração. Mulher talvez, mas que tem algo de cavalheiro e de cruzado, como se possuísse as duas naturezas, ou como se o destinatário da carta estivesse a cada instante tão presente que lhe emprestasse os seus gostos e a sua voz. Mas que mulher é essa e quem é você?

De qualquer forma, a História de O vem de longe. Nela experimento primeiro este repouso, como nesses espaços que surgem em uma narrativa que durante muito tempo foi carregada por seu autor, de lhe ser familiar. Quem é Pauline Reagé? Será uma simples sonhadora como outras? (Basta escutar seu coração, dizem-me: é um coração que nada pára). Ou é uma dama que teve essa experiência, que passou por isso e que se admira de que uma aventura que tinha começado tão bem _ ou pelo menos tão gravemente, na ascese e na punição _ acabe tão mal, numa satisfação suspeita? pois afinal, e nisto estamos de acordo, O permanece numa espécie de prisão domiciliar onde o amor a fez entrar; permanece aí e não se sente tão mal assim. No entanto, a esse respeito:

Uma decência inexorável


A mim também, este fim surpreende. Ninguém me tira a idéia de que não é o verdadeiro fim; de que na realidade (por assim dizer) nossa heroína consegue que Sir Stephen a faça morrer, e que só depois de morta venha libertá-la de seus ferros. Mas evidentemente nem tudo foi dito, e esta abelha _ é de Pauline Reagé que falo _ guardou para si uma parte do seu mel. Quem sabe, ela talvez tenha sido tomada, apenas desta vez, por uma preocupação de escritora: contar um dia a continuação das aventuras de O. Além disso, esse fim era tão evidente que não valia a pena escrevê-lo. Podemos descobri-lo sozinhos, sem nenhuma dificuldade, e, ao descobrirmos, ele nos inquieta um pouco. Mas você, como o inventou? _ e que palavra usar para esta aventura? Volto lá, tanto estou certo de que, uma vez encontrados, os tamboretes, os leitos de colunas e as próprias correntes se explicariam, e deixariam ir e vir entre eles esta grande força obscura, este fantasma cheio de intenções, estes sopros estrangeiros. 

É preciso pensar aqui que existe no desejo masculino algo, justamente, de estrangeiro, de insustentável; como essas pedras onde sopram os ventos que, se movem ou se põem a suspirar, e a soar como um bandolim. As pessoas vêm de muito longe para vê-las. No entanto, têm logo vontade de fugir, por mais que amem sua música. Mas, e se o papel dos eróticos (dos livros perigosos, se preferirem) fosse o de nos pôr a par, de tranqüilizar-nos a esse respeito, como um confessor? Sei muito bem que em geral nos habituamos. E mesmo os homens não ficam constrangidos por tanto tempo. Tomam seu partido, dizem que foram eles que começaram. Mentem, e se podemos dizer assim, os fatos estão aí: evidentes, demasiado evidentes.

As mulheres também, me dirão. Sem dúvida, mas nelas, o acontecimento não é tão visível. Sempre podem dizer não. Que decência! Sem dúvida vem daí a opinião de que são mais belas, de que a beleza é feminina. Mais belas, não sei, mas em todo o caso mais discretas, menos aparentes, o que é uma forma de beleza. Pela segunda vez penso na decência, a respeito de um livro que aparentemente não trata disto...
Mas será verdade que não se trata disto? Não estou me referindo a essa decência um tanto insípida e falsa que se contenta em dissimular, que foge diante da pedra e nega tê-la visto mover-se. Há uma outra espécie de decência que é irredutível e pronta a castigar; que humilha a carne bastante vivamente como para devolvê-la à sua integridade primeira e reenviá-la à força aos dias em que o desejo ainda não tinha se declarado e em que o rochedo ainda não tinha cantado. Uma decência em cujas mãos é perigoso cair, pois para satisfazê-la é necessário, pelo menos, as mãos amarradas às costas e os joelhos separados, os corpos esquartejados, o suor e as lágrimas.

Prece que estou dizendo coisas aterrorizantes. Pode ser, mas então, é porque o terror é o nosso pão de cada dia _ e talvez os livros perigosos sejam aqueles que nos devolvam ao nosso perigo natural. Qual o apaixonado que não ficaria aterrorizado se medisse por um instante o alcance do juramento que fez, não inconsideradamente, de engajar-se por toda a vida? Qual a apaixonada, se por um segundo pesasse o que significam as palavras: “não conheci o amor antes de encontrá-lo... nunca me apaixonei antes de conhecê-lo”, que lhe vêm aos lábios, ou ainda, e mais sabiamente _ sabiamente? _ “gostaria de me punir por ter sido feliz antes”? Ei-la, se posso me expressar assim, pega pela palavra. Ei-la entregue.

Portanto, não faltam torturas na História de O. Não faltam golpes de chibata nem mesmo marcas a ferro em brasa, sem falar do pelourinho e da exposição total; quase tantas torturas como há preces na vida dos acetas do deserto; não menos cuidadosamente diferenciadas e como numeradas _ como separadas umas das outras por pequenas pedras. Nem sempre são torturas alegres _ quero dizer, alegremente infligidas. René se recusa; Sir Stephen, se consente, é como por dever. Com toda a evidência, não se divertem. Nada têm de sádico. Tudo se passa, enfim, como se fosse apenas O, desde o começo, que exigisse ser castigada, violentada nos seus refúgios.

Aqui, algum tolo vai falar de masoquismo. Seja, não é mais que acrescentar ao verdadeiro mistério um mistério falso, de linguagem. Que quer dizer “masoquismo”? Que a dor é ao mesmo tempo prazer, e o sofrimento, alegria? Pode ser. É um tipo de afirmação que os metafísicos usam bastante _ assim, dizem também que toda presença é uma ausência, e que toda palavra, um silêncio _ eu, de modo algum nego que possa ter sentido, ainda que nem sempre se compreenda, ou pelo menos alguma utilidade. Mas é uma utilidade, em todo o caso, que não depende da simples observação _ e que portanto não interessa ao médico, nem ao simples psicólogo, e muito menos ao tolo. Não, dizem-me, trata-se realmente de uma dor, mas que o masoquista sabe “transformar” em prazer; trata-se de um sofrimento do qual desprende, por alguma química cujo segredo possui, uma pura alegria.

Que novidade! Assim, os homens teriam finalmente encontrado o que tão assiduamente procuravam na medicina, na moral, nas filosofias e nas religiões: o meio de evitar a dor _ ou pelo menos de ultrapassá-la; de compreendê-la ( mesmo se quisermos ver nela efeito da nossa tolice ou dos nossos erros). E, além disso, tê-la-iam encontrado há muito tempo, pois afinal os masoquistas não apareceram ontem. Resta-me, então, admirar-me de que não se lhes tenha dado maiores honras; que não se tenha espreitado seu segredo. Que eles não tenham sido reunidos nos palácios para melhor serem observados, fechados nas suas jaulas.

Talvez os homens nunca se coloquem questões às quais, em segredo, já não tenham dado resposta. Talvez para isso bastasse pô-los em contato uns com os outros, arrancá-los à sua solidão (como se não existisse um desejo humano que fosse puramente quimérico). Pois bem, pelo menos temos aí a jaula, e esta mulher na jaula. Só resta escutá-la.

Curiosa carta de amor


Diz: “Você não deveria assustar-se. Considere melhor o seu amor; como ficaria aterrorizado se por um instante compreendesse que sou mulher e que estou viva. E não é esquecendo as fontes ardentes do sangue que você vai secá-las”.

“Seu ciúme não o engana. É verdade que você me faz feliz, sadia e mil vezes mais viva. No entanto não posso evitar que esta felicidade não se volte imediatamente contra você. A pedra também canta mais forte quando o sangue está saciado e o corpo repousado. É melhor que me guarde nesta jaula e que mal me alimente, se ousar. Tudo o que me aproxima da doença e da morte me torna fiel. E só nos momentos em que você me faz sofrer, é que fico fora de perigo. Não devia ter aceitado ser um deus para mim, se os deveres dos deuses lhe dão medo, e todos sabem que não são tão suaves. Você já me viu chorar. Ainda falta sentir prazer em minhas lágrimas. Não é encantador meu pescoço, quando se contrai e estremece apesar de mim, com um grito que sufoco? É bem verdade que é preciso trazer um chicote ao vir encontrar-nos. E para mais de uma, seria necessário o ‘o gato de nove caudas’ ”.

Em seguida acrescenta: “Que brincadeira tola! Mas também, você não compreende nada... E se eu não o amasse de um amor louco, acredita que ousaria falar-lhe assim? e trair minhas semelhantes?”

Diz ainda: “É minha imaginação, são meus sonhos vagos que o atraiçoam  a cada instante. Deixe-me extenuada. Livre-me destes sonhos. Entregue-me. Tome as iniciativas para que eu não tenha tempo nem para ‘imaginar’ que lhe sou infiel. (E a realidade, em todo o caso é menos preocupante) Mas tome o cuidado de primeiro me marcar com suas iniciais. Se trago a marca de seu chicote ou de suas correntes, ou ainda estas argolas nos lábios do ventre, que seja evidente para todos que lhe pertenço. Durante todo o tempo em que me baterem ou me violentarem da sua parte, não sou mais do que pensamento em você, desejo por você, obsessão por você. É o que você queria, acho. Quanto a mim, amo-o e é também o que quero.

“Se eu, de uma vez por todas, deixei de ser eu, se minha boca, meu ventre e meus seios não me pertencem mais, torno-me criatura de um outro mundo, onde tudo mudou de sentido. Talvez, um dia, eu mesma não saiba mais nada de mim. Que me importará então o prazer, que me importarão as carícias de tantos homens, seus enviados, que não diferencio _ que não posso comparar com você?”

É assim que ela fala. Quanto a mim, escuto-a e percebo que não mente. Tento segui-la ( foi a prostituição que durante muito tempo me atrapalhou). Pode ser, afinal, que a túnica ardente das mitologias não seja simples alegoria, nem a prostituição sagrada, curiosidade da história. Pode ser que as correntes das canções ingênuas e os “amo-o até a morte” não sejam simples metáfora, nem o que dizem as prostitutas a seus amados: “Você está na minha pele, faça de mim o que quiser”. ( É curioso que para nos desfazermos de um sentimento que nos desorienta, preferimos emprestá-lo aos apaches, às prostitutas). Pode ser que Heloísa, quando escrevia a Abelardo: “ Serei sua alegria”, não quisesse apenas fazer uma frase bonita. Sem dúvida a História de O é a carta de amor mais cruel que um homem tenha jamais recebido.

(OBS: alegria - No original: “fille de joie” _ pode ser interpretado tanto como prostituta, quanto como aquela que dá alegria ) 
    
Lembro-me daquele holandês que devia voar sobre os oceanos enquanto não encontrasse uma mulher que aceitasse perder a vida para salvá-lo; e do cavalheiro Guiguemar que espera, para se curar de seus ferimentos, uma mulher que sofra por ele “o que nenhuma mulher jamais sofreu”. A História de O, certamente, é mais longa que um  lai e bem mais detalhada que uma simples carta. Talvez aí fosse necessário voltar de mais longe. Talvez nunca como hoje, tenha sido tão difícil compreender simplesmente o que dizem os rapazes e as moças da rua _ o que diziam, talvez, os escravos de Barbados. Vivemos num tempo em que as verdades mais simples têm como único recurso voltarem nuas para nós (como O), sob uma máscara de coruja.

Pois escuta-se pessoas de comportamento normal, e até mesmo sensato, falarem do amor de bom grado como de um sentimento leve e sem conseqüências. Dizem que oferece muitos prazeres, e que este contato de duas epidermes tem bastante charme. Acrescentam que o charme e o prazer dão seu máximo a quem sabe guardar no amor sua fantasia, seu capricho e, justamente, sua liberdade natural. Quanto a mim, concordo, se é tão fácil às pessoas de sexo diferente (ou do mesmo sexo) darem alegria umas às outras, que aproveitem; não devem se constranger. Só há aí uma ou duas palavras que me incomodam: a palavra “amor” e também a palavra “liberdade”. É óbvio que é justamente o contrário: o amor é quando se depende _ não digo apenas para o prazer, mas para a própria existência, e para o que vem antes da existência: o próprio desejo que se tem de existir _ de cinqüenta coisas barrocas: de dois lábios (e da careta ou do sorriso que fazem), de um ombro (de certo jeito que tem de subir ou de descer), de dois olhos (de um olhar um pouco mais úmido ou mais seco), enfim, de todo um corpo estrangeiro, com o espírito ou a alma que ele carrega _ de um corpo que pode a cada instante tornar-se mais resplandecente que o sol, ou mais gelado que uma planície de neve. Não é alegre passar por isso, vocês me fazem rir com seus suplícios. Treme-se quando aquele corpo se abaixa para fechar a fivela de um sapatinho, e parece que todos o estão vendo tremer. Melhor o chicote e as argolas na carne! Quanto à liberdade... qualquer homem ou mulher que tenha passado por lá, terá vontade de gritar contra essa liberdade, de expandir-se em injúrias e em horrores. Não, os horrores não faltam na História de O. Mas às vezes me parece que, mais do que uma jovem mulher, é uma idéia, um tipo de idéias, uma opinião, que se vê aí posta em suplício.

A verdade sobre a revolta


Coisa estranha, a felicidade na escravidão aparece nos nossos dias como uma idéia nova. Já não há mais o direito de vida e de morte nas famílias, nem nas escolas castigos corporais e provações, nem nos casamentos punição conjugal. Hoje, tristemente, são postos a apodrecer nos porões os mesmos homens que outros séculos decapitavam altivamente em praça pública. Só infligimos torturas anônimas e imerecidas. No entanto, são mil vezes mais atrozes, é o povo inteiro de uma cidade que a guerra põe para assar de uma só vez. A ternura excessiva do pai, do professor ou do amante é resgatada pela chuva de bombas, o napalm e a explosão dos átomos. Tudo se passa como se existisse no mundo um certo equilíbrio harmonioso da violência do qual perdemos o gosto e até mesmo o sentido. Quanto a mim, não me zango porque foi uma mulher quem os reencontrou. Nem mesmo me admiro.

Para dizer a verdade não tenho tantas idéias sobre as mulheres como os homens geralmente têm. Fico surpreso de que existam (mulheres). Mais do que surpreso: vagamente maravilhado. É por isso talvez, porque me parecem maravilhosas, que nunca cesso de invejá-las. E o que invejo, exatamente?

Às vezes me acontece ter saudades da minha infância. Mas não das surpresas e da revelação de que falam os poetas. Não. O que me dá saudades é a recordação de uma época em que me achava responsável por toda a terra. Alternadamente campeão de boxe ou cozinheiro, orador político (sim), general, ladrão, e até mesmo pele-vermelha, árvore ou rochedo. Vão me dizer que se tratava de um jogo. Sim, pode ser, para vocês adultos, mas para mim, nunca. Era justamente quando eu tinha o mundo nas mãos, com as preocupações e perigos decorrentes: era então que eu era universal. E é aí que eu queria chegar.

É que às mulheres é dado, pelo menos, parecem-se durante toda a vida com as crianças que éramos. Uma mulher entende-se muito bem com mil coisas que me escapam. Em geral, sabe costurar. Sabe cozinhar. Sabe arrumar um apartamento e quais são os estilos que não combinam (não digo que faça tudo isso com perfeição, mas eu também não era um pele-vermelha sem defeitos). E sabe muito mais. Fica à vontade com os cães e os gatos; fala com esses semiloucos, as crianças, que admitimos entre nós: ensina-lhes a cosmologia e a elegância, e até mesmo o piano. Enfim, não paramos de sonhar, desde a infância, com um homem que seria ao mesmo tempo todos os homens. Mas parece que a cada mulher é concedido ser todas as mulheres (e todos os homens) ao mesmo tempo. Há coisas mais curiosas ainda.

Ouve-se dizer nos nossos dias que basta compreender tudo para tudo perdoar. Pois bem, sempre me pareceu que para as mulheres _ por mais universais que sejam _ era exatamente o contrário. Tive muitos amigos que me tomavam pelo que sou e eu, por minha vez, tomava-os pelo que eram _ sem o menor desejo de nos transformarmos uns aos outros. Até mesmo me alegrava _ e eles por seu lado também se alegravam _ pelo fato de que cada um de nós fosse tão semelhante a si mesmo. Mas não há uma mulher que não tente transformar o homem que ama e transformar-se ao mesmo tempo. Como se o provérbio mentisse, e bastasse compreender tudo para não perdoar absolutamente nada.

Não, Pauline Réage não se perdoa muita coisa. E até me pergunto se não exagera um pouco; se as mulheres suas semelhantes são-lhe tão semelhantes quanto supõe. Mas é o que mais de um homem lhe concede de muito bom grado.

Deve-se deplorar o caderno dos escravos de Barbados? Temo, para dizer a verdade, que o excelente anabatista que o redigiu, o tenha esmagado, na parte apologética, com lugares-comuns bastante simples: por exemplo, que haverá sempre escravos (em todo o caso é o que se vê): que serão sempre os mesmos (é algo a discutir); que se deve resignar-se ao seu estado e não estragar com recriminações um tempo que poderia ser dedicado aos jogos, à meditação, aos prazeres do hábito; assim por diante. Mas suponho que não disse a verdade: é que os escravos de Glenelg estavam apaixonados pelo seu senhor, é que não podiam viver sem ele, nem sem o seu domínio. A mesma verdade, enfim, que proporciona à História de O sua decisão, sua inconcebível decência e este grande vento fanático que não pára de soprar.

                                   
                                                                 JEAN PAULHAN





CAPITULO 1- OS AMANTES DE ROISSY


Um dia, seu amante leva O para passear num bairro onde não costumam ir, o parque Montsouris, o parque Monceau.  Na esquina do parque, no canto de uma rua onde nunca há ponto de táxis, depois de terem passeado pelo parque e sentado lado a lado na relva, avistam um carro com taxímetro, parecendo um táxi. “Entra”, ele diz. Ela entra. É um fim de tarde de outono. Ela está vestida como sempre: sapatos de saltos altos, um tailler de saia plissada, uma blusa de seda e sem chapéu. Usa luvas longas que sobem até as mangas do tailler, e na bolsa de couro leva seus documentos, o pó-de-arroz e seu ruge. O táxi parte silenciosamente, sem que se tenha dito qualquer palavra ao motorista. Mas ele fecha as cortinas sobre os vidros à direita, à esquerda e atrás; pensando que quer beijá-la ou que quer que o acaricie, ela retirou as luvas. Mas ele diz: ”Você está atrapalhada, me dá a sua bolsa”. Ao recebe-la, ele a põe fora do seu alcance, e acrescenta: ”Também está vestida demais. Desabotoe a cinta-liga e enrole as meias acima dos joelhos: toma estas ligas”. É um pouco difícil, o táxi segue mais rápido, e ela tem medo que o motorista olhe para trás. Finalmente as meias são enroladas e ela sente-se constrangida ao sentir as pernas nuas e livres sob a seda da combinação. A liga desabotoada escorrega. “Abre o cinto”, ele diz, “e tire as calcinhas”. Isto é fácil, basta passar as mãos atrás das costas e levantar-se um pouco. Ele pega das suas mãos o cinto e as calcinhas, abre a bolsa e tendo-os guardado, diz: “Não deve sentar-se sobre a combinação e a saia, deve levantá-las e sentar-se diretamente no banco”. O banco é de plástico liso e frio, é estranho senti-lo colar nas coxas. E ele continua: “ Agora põe novamente as luvas” . O táxi corre sempre e O não ousa perguntar  por que René não se move e não diz mais nada, nem que significado pode ter para ele que ela esteja ali, imóvel e muda, tão desnudada e tão oferta, com suas luvas, num carro negro que não sabe para onde vai. Apesar de nada mais ordenar nem proibir, ela não ousa cruzar as pernas ou aproximar os joelhos. Tem as mãos enluvadas apoiadas, uma de cada lado, sobre o banco.

“Chegamos”, diz ele de repente. Chegaram: o táxi pára numa bela avenida, sob uma árvore - são plátanos - diante de uma espécie de pequena mansão que se advinha entre o pátio e o jardim, como as pequenas mansões do bairro de Saint-Germain. Os postes de iluminação estão um pouco longe, no carro ainda está escuro e chove lá fora. “Não se mexa”, diz René; “não se mexa nem um pouco”. Estende a mão para a gola de sua blusa, desfaz o nó, depois os botões. Ela inclina um pouco o busto, pensando que ele quer acariciar seus seios. Não. Apalpa apenas para segurar e cortar com um pequeno canivete as alças do sutiã, que retira. Agora, sob a blusa que ele novamente fechou, seus seios estão livres e nus, como nus e livres estão os quadris e o ventre, da cintura até os joelhos.

“Escuta”, diz ele. “Agora você está pronta. Deixo-a . Você vai descer e bater à porta. Seguirá quem abrir e fará o que lhe for ordenado. Se não entrar imediatamente, virão buscá-la e se não obedecer imediatamente, farão com que obedeça. Sua bolsa? Não, você não precisa mais de sua bolsa. Agora você é apenas a mulher que eu estou fornecendo. Sim, sim, vou estar aí. Vai”.

Uma outra versão do mesmo começo era mais brutal e mais simples: a jovem, vestida da mesma maneira, era levada num carro por seu amante e por um amigo dele que desconhecia. O desconhecido ia ao volante, o amante sentado ao seu lado; e era o amigo, o desconhecido, quem falava, para explicar-lhe que seu amante estava encarregado de prepará-la, que ia amarrar suas mãos às costas por cima das luvas, desabotoar sua cinta-liga e enrolar suas meias; tirar seu cinto, suas calcinhas e o sutiã, e vendar seus olhos; e que depois a entregariam no castelo, onde seria progressivamente instruída sobre o que tinha que fazer. Com efeito, uma vez despida e amarrada, depois de terem rodado por meia hora, ajudaram-na a sair do carro, fizeram-na subir alguns degraus, e depois de ter passado por algumas portas, sempre às cegas, deixaram-na sozinha numa sala escura, retirando enfim sua venda. Esperou aí por meia hora, uma hora ou duas, não sei, mas que parecia um século. Mais tarde, quando finalmente a porta se abriu, e que ascenderam a luz, percebeu que tinha esperado num ambiente banal, confortável, e no entanto singular: um tapete espesso no chão, nenhum móvel, e cheio de armários embutidos. Duas mulheres, jovens e bonitas, abriram a porta. Vestiam-se como as belas servas do século dezoito. Longas saias leves e bufantes escondiam seus pés, e os espartilhos apertados, enlaçados ou grampeados na frente realçavam os seios, com rendas cobrindo o colo e mangas semilongas. Tinham pintado os olhos e a boca. Em torno do pescoço usavam uma gargantilha; nos punhos, braceletes apertados.

Sei que nesse momento soltaram as mãos de O que ainda estavam amarradas às costas e disseram-lhe para despir-se, pois iam banhá-la e maquiá-la. Deixando-a nua, guardaram suas roupas num dos armários. Não a deixaram tomar banho sozinha, e pentearam-na como no cabeleireiro, fazendo-a sentar-se numa dessas grandes poltronas que se inclinam quando se lava a cabeça e novamente se endireitam sob o secador, depois do mise-en-plis. Isso tudo costuma durar pelo menos uma hora. Durou mais do que uma hora, na verdade, mas estava sentada nua nessa poltrona e proibida de cruzar as pernas ou de aproximar os joelhos. E como havia um grande espelho à sua frente, de alto a baixo da parede que nenhuma mesinha interrompia, via-se assim aberta, sempre que seu olhar encontrava o espelho. Quando ficou pronta e maquilada, as pálpebras ligeiramente sombreadas, a boca muito vermelha, o bico e a auréola dos seios e a borda dos lábios do ventre rosados, os pêlos das axilas e do púbis, o sulco entre as coxas, sob os seios, e as palmas das mãos longamente perfumados, fizeram-na entrar na sala onde um espelho de três faces e um quarto espelho na parede permitiam que se visse bem. Foi-lhe dito para sentar-se no tamborete no meio dos espelhos, e esperar. A pele negra que cobria o tamborete picava um pouco; o tapete era negro, as paredes vermelhas; assim como as sandálias que vestiam seus pés. Numa das paredes, uma grande janela dava para um belo parque sombrio. Tinha parado de chover, as árvores se moviam ao vento, a lua corria alto entre as nuvens. Não sei por quanto tempo ficou na sala vermelha, nem se estava realmente sozinha como pensava, ou se alguém a espreitava por uma abertura camuflada na parede. Só sei que, quando as duas mulheres voltaram, uma trazia uma fita métrica e a outra, uma cesta. Vinham acompanhadas de um homem vestido com uma longa túnica violeta, de mangas justas nos punhos e largas nas cavas, e que, ao caminhar, abria-se, até a cintura. Sob a túnica, via-se uma espécie de malha colante que cobria suas pernas e suas coxas, mas que lhe deixava à mostra o sexo. Ao seu primeiro passo, o que O viu imediatamente foi o sexo; em seguida, o chicote de tiras de couro em torno da cintura; depois, que estava mascarado por um capuz negro, que até os olhos dissimulava, com uma rede de tule negro - e, finalmente, as mãos, vestidas com luvas negras, de fina pelica. Tratando-a com intimidade, o homem ordenou-lhe que não se mexesse, e às mulheres que se apressassem. A que tinha a fita métrica tomou, então, as medidas do pescoço e dos pulsos de O . Eram medidas comuns, embora pequenas. Não foi difícil encontrar, na cesta que a outra segurava, o colar e os braceletes que lhes correspondiam. Eram feitos em várias camadas de couro (cada camada, bem fina, não ultrapassava a largura de um dedo) e fechados por um sistema de pressão, que funcionava automaticamente como um cadeado, só podendo se abrir com uma pequena chave. Na parte exatamente oposta à fechadura, no meio das camadas de couro, e quase sem molejo, havia um anel de metal que se prendia ao bracelete caso se quisesse fixá-lo, pois era apertado demais, assim como o colar, embora fossem suficientemente flexíveis para não machucar e ao mesmo tempo para impedir que por aí pudesse se introduzir qualquer coisa, mesmo que fina. Quando o colar e os braceletes foram fixados no seu pescoço e nos pulsos, o homem mandou que se levantasse. Sentando-se então no seu lugar, no tamborete de pele, aproximou-a de seus joelhos, passou a mão enluvada entre suas coxas e sobre seus seios e explicou-lhe que seria apresentada naquela mesma noite, depois do jantar, que deveria fazer sozinha. Com efeito, jantou sozinha, sempre nua, numa espécie de cabine onde uma mão invisível lhe passava os pratos através de uma abertura....
Tendo terminado o jantar, as mulheres voltaram para buscá-la. Já no quarto de vestir, as duas juntas fixaram os anéis dos braceletes às suas costas e puseram-lhe aos ombros, presa ao colar, uma longa capa vermelha que a cobria inteiramente, mas que se abria ao andar, pois não podia segurá-la tendo as mãos atadas às costas. Uma das mulheres caminhava na frente abrindo as portas, a outra vinha em seguida, fechando-as. Atravessaram um vestíbulo, dois salões, e entraram na biblioteca, onde quatro homens tomavam café. Vestiam túnicas longas como o primeiro, mas não usavam máscaras. O não teve tempo, entretanto, de ver seus rostos, para saber se seu amante estava entre eles (estava), pois um dos quatro dirigiu uma lâmpada em sua direção, que a cegou. Ficaram todos olhando para ela, imóveis: as duas mulheres, uma de cada lado, e os homens à sua frente. Depois, apagaram a lâmpada, as mulheres partiram e novamente colocaram a venda nos seus olhos. Foi então conduzida, vacilante, e ela sentiu que estava em frente à lareira, ao redor da qual os quatro homens tinha se sentado. O sentia o calor e escutava o crepitar suave das achas ardendo em silêncio. Estava voltada para o fogo. Duas mãos retiravam sua capa, enquanto duas outras desciam ao longo de seus quadris, depois de terem verificado o fecho dos braceletes; não usavam luvas, e uma delas penetrou-a nos dois lados ao mesmo tempo, tão bruscamente que ela gritou. Alguém riu. Outro disse: “Virem-na para que vejamos os seios e o ventre”. Fizeram-na virar-se e o calor do fogo ficou às suas costas. Uma mão agarrou-lhe um seio, uma boca tomou o bico do outro. Mas, perdendo subitamente o equilíbrio, O caiu para trás; amparada, por que braços? Já abriam suas pernas, apartando suavemente os lábios: cabelos roçaram o interior de suas coxas. Ouviu alguém dizer que era preciso pô-la de joelhos, o que foi feito. Sentia-se desconfortável nessa posição, tanto mais que não lhe permitiam fechar os joelhos e que suas mãos, amarradas às costas, mantinham-na inclinada para frente. Permitiram-lhe então curvar-se um pouco para trás, meio sentada nos calcanhares, como costumam fazer as religiosas.
_ Você nunca a amarrou?
_ Não, nunca.
_ Nem a chicoteou?
_ Também não, mas justamente....
Era seu amante quem respondia.
_ Justamente _ disse a outra voz _ amarrá-la algumas vezes, chicoteá-la um pouco, e permitir que tome gosto nisso, não. É preciso ultrapassar o momento do prazer, para se obterem as lágrimas.
Fizeram então com que O se levantasse, e estavam para desamarrá-la, sem dúvida para prendê-la a alguma coluna ou à parede, quando alguém declarou que queria possuí-la antes, e imediatamente - e assim, foi novamente colocada de joelhos, desta vez com o busto apoiado num tamborete, com as mãos sempre amarradas às costas, e os quadris mais altos do que o torso; e um dos homens, segurando com as duas mãos seus quadris, penetrou no seu ventre. Cedeu lugar a um segundo; o terceiro, procurou uma passagem mais estreita, e forçando-a bruscamente, fez com que gritasse. Quando a largou, gemendo e suja de lágrimas sob a venda, O caiu; foi para sentir uns joelhos contra seu rosto, e perceber que sua boca não seria poupada. Deixaram-na, finalmente, de bruços, cativa nos seus ouripéis vermelhos, diante do fogo. Ela escutou que os copos novamente se enchiam, que bebiam, que as cadeiras eram movidas. Mais madeira era colocada no fogo. De repente, tiraram a sua venda. A peça, grande, com livros pelas paredes, era debilmente iluminada por uma lâmpada sobre o console e pela claridade do fogo que se reanimava. Dois dos homens estavam de pé, fumando; um outro, sentado, tinha um chicote sobre os joelhos; e o que se inclinava para ela, acariciando-lhe o seio, era o seu amante. Mas os quatro a tinham possuído e ela não o havia distinguido dos demais.
Foi-lhe explicado que, enquanto permanecesse no castelo, seria sempre assim: veria o rosto daqueles que a violariam e atormentariam, mas nunca à noite, e jamais saberia quem eram os responsáveis pelo pior. O mesmo aconteceria quando fosse chicoteada, a menos que se quisesse que ela se visse sendo chicoteada; nesse caso, não usaria a venda numa primeira vez, mas eles colocariam suas máscaras, para que não pudesse distinguí-los. Seu amante levantou-a, colocando-a sentada em sua capa vermelha, no braço de uma poltrona junto à lareira para que escutasse o que tinham a lhe dizer e visse o que queriam lhe mostrar. Continuava com as mãos amarradas às costas. Foi-lhe então mostrado o chicote que era negro, longo e fino, de um bambu estreito e coberto de couro, como os que se vêem nas vitrines das grandes lojas de arreios. O chicote de couro que o primeiro homem que vira trazia no cinto era longo, feito de seis tiras terminadas por um nó. Havia um terceiro chicote de cordas bastante finas que terminavam em vários nós, duros como se tivessem sido mergulhados na água, o que realmente fora feito, como pôde constatar quando o passaram sobre seu ventre e afastaram suas coxas para que pudesse sentir melhor as cordas úmidas e frias sobre a pele delicada do interior. Sobre o console, ficaram as chaves e as pequenas correntes de ferro. Numa das paredes, uma barra apoiava-se em dois pilares, numa altura média; num deles havia um gancho, pregado numa altura que um homem podia alcançar na ponta dos pés e com o braço esticado. Enquanto seu amante a tomava nos braços, com uma mão em seus ombros e a outra, como para fazê-la desfalecer, no fundo de seu ventre, queimando-a, disseram-lhe que iam desamar suas mãos, apenas para prendê-la, pelos mesmos braceletes e uma das pequenas correntes de ferro, a esta barra e que, com exceção das mãos que ficariam amarradas um pouco acima da cabeça, poderia se mexer e ver os golpes chegarem. Que no começo seria chicoteada apenas nos quadris e nas coxas, enfim, da cintura até os joelhos, como lhe tinham preparado no carro que a trouxera, no momento em que a fizeram sentar-se nua sobre o banco. Um dos quatro homens presentes, entretanto, provavelmente iria querer marcar suas coxas com a chibata, que deixa belas riscas, longas, profundas e que duram muito tempo. Nem tudo lhe seria infligido de uma só vez; teria tempo para gritar, debater-se e chorar. Deixá-la-iam respirar, mas assim que tivesse recuperado o fôlego recomeçariam, julgando o resultado não por seus gritos ou por suas lágrimas, mas pelos sinais, mais ou menos vivos ou duradouros, que os chicotes deixariam na sua pele. Observaram que esta maneira de julgar a eficácia do chicote, além de ser justa, e de tornar inúteis as tentativas que faziam as vítimas de despertar a piedade exagerando os gemidos, ainda permitia que fosse aplicado fora das paredes do castelo, ao ar livre do parque, como acontecia freqüentemente, ou mesmo em algum apartamento ou num quarto de hotel, com a condição, é claro, de se usar uma mordaça (como lhe mostraram em seguida) que só deixe em liberdade as lágrimas, que abafe todos os gritos e que permita apenas alguns gemidos.
 Não pretendiam usá-la aquela noite, muito pelo contrário. Queriam ouvir O gritar imediatamente. O orgulho que fazia com que resistisse e se calasse não durou muito: logo ouviram-na suplicar para que a desamarrassem, para que parassem um instante, um só. Contorcia-se com tal frenesi para escapar às mordidas das correias, que chegava a rodopiar em torno de si mesma diante do poste, e como a corrente que a prendia era longa e um pouco frouxa, embora sólida, também o ventre, a frente e os lados das coxas recebiam sua parte, quase tanto quanto os quadris. Com efeito, depois de terem parado um instante, decidiram só recomeçar uma vez tendo-se passado uma corda em torno de sua cintura e do poste. Como foi bem amarrada, para que o corpo ficasse mais fixo ao poste, o tronco necessariamente inclinou-se para um lado, destacando as nádegas do outro lado. A partir desse momento, os golpes só se perdiam deliberadamente. Considerando o modo como seu amante a entregara, O poderia imaginar que apelar para sua piedade era a melhor maneira para que redobrasse sua crueldade, tanto prazer encontrava em arrancar-lhe ou em fazer com que lhe arrancassem estes testemunhos indubitáveis do seu poder. E efetivamente foi ele quem observou que o chicote de couro, sob o qual O gemera primeiro, marcava muito menos ( o que quase se podia obter com a corda molhada do outro chicote, e no primeiro golpe com a chibata) permitindo, assim, aumentar a duração da pena e recomeçar quase no instante em que viesse à fantasia. Pediu que só se usasse este. Enquanto isso, um dos quatro, que só amava as mulheres no que elas têm em comum com os homens, atraído por estas nádegas ofertas que abaixo da cintura esticavam-se sob a corda e que, ao quererem esquivar-se, mais se ofereciam, pediu uma pausa para aproveitar-se disso e, apartando-as, ardentes sob suas mãos, penetrou-a com dificuldade, observando que era necessário tornar essa passagem mais cômoda. Concluiu-se que isto era possível e que seriam tomadas as providências necessárias.
Depois de desamarrarem a jovem, cambaleante e quase desmaiada sob a capa vermelha, sentaram-na numa grande poltrona junto ao fogo para que, antes de ser levada à cela que devia ocupar, lhe fossem fornecidos os detalhes das regras que teria que observar no castelo durante o tempo em que permanecesse aí, e na vida normal, depois que o tivesse deixado (sem que isso significasse sua liberdade de volta). Bateram à porta. As duas mulheres que a tinham recebido traziam as roupas que vestiria durante sua estada, e com as quais deveria ser reconhecida por aqueles que tinham sido hóspedes do castelo antes da sua chegada ou que o seriam depois de sua partida. As roupas eram semelhantes às delas: sobre a anágua de cambraia engomada, um vestido longo de saia ampla, e com um corpete que deixava os seios, levantados pelo espartilho, quase descobertos, apenas velados pela renda. A anágua era branca, o espartilho e o vestido eram de cetim verde-água, e a renda, também branca. Quando O ficou pronta e voltou à sua poltrona perto do fogo, ainda mais pálida com seu vestido em tom pastel, as duas mulheres que tinham permanecido em silêncio, saíram. Um dos quatro homens segurou uma delas na saída, fazendo sinal à outra para que esperasse e, conduzindo-a até O, fez com que se virasse, segurando-a pela cintura com uma das mãos e com a outra levantando a saia para mostrar, disse-lhe, o porquê deste traje, e como podia ser reduzido, mantendo-se a saia levantada apenas com o cinto tanto quanto se quisesse, o que deixava à disposição, de um modo prático, o que assim se descobria. Aliás, freqüentemente fazia-se circular pelo castelo ou pelo parque mulheres com as saias arregaçadas desta maneira, ou pela frente, sempre até a cintura. Fizeram com que a mulher mostrasse a O como deveria manter sua saia: levantada em várias voltas, presa no cinto bem na frente para deixar livre o ventre, ou bem no meio das costas para liberar as nádegas. Em ambos os casos, a anágua e a saia caíam em grandes pregas diagonais misturadas em cascata. Assim como O, a jovem mostrava, nos quadris, marcas frescas de chibata. Finalmente saiu.
Este é o discurso que em seguida dirigiram a O: “Você está aqui a serviço de seus senhores. Durante o dia, fará o trabalho que lhe confiarem para a manutenção da casa, como varrer, arrumar os livros, dispor as flores ou servir à mesa. Não há serviços mais pesados. Mas deve abandonar imediatamente o que estiver fazendo, à primeira palavra ou ao primeiro sinal de quem lhe ordenar, pelo seu único serviço verdadeiro, que é o de entregar-se. Suas mãos não são suas, nem seus seios, nem particularmente nenhum dos orifícios de seu corpo, que podemos esquadrinhar e nos quais podemos penetrar à vontade. Como um sinal, para que esteja sempre presente ao seu espírito, ou o mais presente possível, de que perdeu o direito de se esquivar, diante de nós nunca deverá fechar totalmente os lábios, nem cruzar as pernas ou aproximar os joelhos (como viu que lhe proibiram assim que chegou). Isso significará, aos seus próprios olhos e aos nossos, que a sua boca, o seu ventre e os seus quadris estão abertos para nós. Diante de nós, nunca tocará seus seios: eles são alteados pelo espartilho para nos pertencerem. Durante o dia, portanto, deverá ficar vestida, mas levantará a saia sempre que alguém lhe ordenar, e quem quiser poderá utilizá-la com o rosto descoberto _ e como quiser _ com restrição entretanto do chicote. Este só lhe será aplicado entre o poente e o nascer do sol. Mas além da aplicação que será feita por quem desejar, poderá ser também punida com o chicote à noite, por ter faltado a alguma regra durante o dia: seja por não ter tido suficiente complacência, ou por ter levantado os olhos para quem vier falar-lhe ou possuí-la: nunca deve olhar-nos no rosto. Neste traje que usamos a noite, e que estou usando agora, se deixamos o sexo descoberto, não é pela comodidade que também se poderia obter de outro modo, é pela insolência, para que seus olhos se fixem nele e não se fixem em mais nada; é para que aprenda que este é o seu senhor, a quem seus lábios foram destinados em primeiro lugar. Durante o dia, quando estamos vestidos normalmente e você como agora, deverá observar as mesmas regras, e se for requisitada, terá apenas o trabalho de abrir suas roupas, que fechará quando tivermos acabado. Em compensação, à noite, só terá seus lábios e a abertura de suas coxas para nos homenagear, pois suas mãos serão amarradas às costas e estará nua como foi-nos trazida há pouco; só terá seus olhos vendados quando quisermos maltratá-la, e agora que já viu como a chicoteamos, quando for chicoteada. A este respeito, como é conveniente que se acostume a receber o chicote, será chicoteada todos os dias enquanto estiver aqui, não tanto pelo nosso prazer, como para sua instrução. Isto é tão verdadeiro, que nas noites em que ninguém a quiser, pode esperar que o criado encarregado desta função venha, na solidão da sua cela, aplicar-lhe o que deve receber e que não estejamos com vontade de aplicar. Com efeito, por este meio, assim como pela corrente que será fixada ao anel do seu colar e que deverá prendê-la na cama mais ou menos estreitamente durante várias horas por dia, trata-se muito menos de fazê-la sentir dor, gritar ou derramar lágrimas, do que fazê-la sentir, por meio desta dor, que está sob coação, de mostrar-lhe que se encontra inteiramente devotada a algo fora de você. Quando sair daqui, usará um anel de ferro no anular, que fará com que seja reconhecida. Nessa ocasião já terá aprendido a obedecer àqueles que estarão usando este mesmo sinal _ ao vê-lo, saberão que você está constantemente nua sob a saia, por mais correta e banal que seja sua roupa e que é para eles que está assim. Os que a acharem indócil, deverão trazê-la aqui, onde será conduzida à sua cela.”
Enquanto falavam com O, as duas mulheres que tinham vindo vesti-la mantinham-se de pé dos dois lados do poste onde a tinham chicoteado, mas sem tocá-lo, como se ele as amedrontasse, ou como se lhes tivesse sido proibido (o que era mais provável). Quando o homem acabou, aproximaram-se de O, que compreendeu que devia levantar-se para segui-las. Levantou-se portanto, segurando as saias com um braço para não tropeçar, pois não estava acostumada a usar vestidos longos e não se sentia segura sobre os chinelos de solas elevadas e de saltos muito altos, que só uma faixa de cetim grosso, do mesmo verde que o vestido, impedia de escapar do pé. Ao abaixar-se, virou a cabeça. As mulheres esperavam, os homens não a olhavam mais. Seu amante, sentado no chão, encostado ao tamborete onde a tinham derrubado no começo da noite, com os joelhos levantados e os cotovelos sobre os joelhos, brincava com o chicote de couro. Ao primeiro passo que deu para alcançar as mulheres sua saia o roçou. Ele levantou a cabeça, sorriu, e chamando-a por seu nome, pôs-se de pé por sua vez. Acariciou suavemente seus cabelos, alisou suas sobrancelhas com a ponta do dedo e beijou-a docemente nos lábios. Disse alto que a amava. O, trêmula, percebeu com terror que lhe respondia “eu o amo” e que era verdade. Ele a tomou nos braços, dizendo “minha querida, meu coração”, e beijando seu pescoço e seu rosto; O descansou a cabeça em seu ombro coberto pela roupa violeta...
Ele repetiu, dessa vez num sussurro, que a amava, e mais baixo ainda disse: “Fique de joelhos, acaricie-me, beije-me” e, empurrando-a, fez sinal às mulheres para se afastarem, encostando-se no console. Ele era grande, mas o console não era muito alto, e suas longas pernas, cobertas com o mesmo violeta de sua roupa, dobravam-se. A túnica aberta estendia-se por baixo como uma tapeçaria e a saliência do console alteava um pouco o sexo pesado e os pêlos claros que o coroavam. Os três homens aproximaram-se. O pôs-se de joelhos no tapete, seu vestido verde como uma corola ao seu redor. O espartilho a apertava, seus seios, cujas pontas se podia ver, ficavam à altura dos joelhos de seu amante. “Um pouco mais de luz”, disse um dos homens. Quando finalmente o raio da lâmpada foi dirigido de modo a que a claridade caísse totalmente sobre seu sexo, sobre o rosto de sua amante que se encontrava bem perto, e sobre suas mãos que o acariciavam por baixo, René ordenou subtamente: “Repete: eu o amo”. O repetiu “eu o amo” com tal delícia que seus lábios mal ousavam roçar a ponta do sexo, ainda protegido pela pele macia. Os três homens, fumando, comentavam seus gestos, o movimento de sua boca fechada e apertada sobre o sexo, ao longo do qual subia e descia, o rosto desfeito que se inundava de lágrimas cada vez que o membro inchado batia no fundo de sua garganta, empurrando sua língua e arrancando-lhe ânsias. Foi com a boca semi-amordaçada pela carne endurecida que a enchia que murmurou ainda: “eu o amo”. AS duas mulheres colocaram-se à direita e à esquerda de René, que se apoiava em seus ombros com os braços. O ouvia os comentários das testemunhas mas, além de suas palavras, espreitava os gemidos de seu amante, atenta em acariciá-lo com um respeito infinito e com a lentidão que sabia agradar-lhe. Sentia que sua boca era bela, pois seu amante condescendia em penetrá-la, pois condescendia em oferecer suas carícias como espetáculo, pois condescendia, enfim, em gozar nela. Recebeu-o como se recebe um deus, ouviu-o gritar, ouviu os outros rirem e, então, desabou com o rosto no chão. As duas mulheres a levantaram, e desta vez levaram-na para fora.
Suas sandálias faziam ruídos nos ladrilhos vermelhos dos corredores, onde se sucediam portas discretas e limpas, com minúsculas fechaduras, como as portas dos quartos dos grandes hotéis. O não ousava perguntar se esses quartos eram habitados, e por quem, quando uma de suas companheiras, cuja voz ainda não tinha ouvido disse: “Esta é a ala vermelha, e o seu criado chama-se Pierre”. “Que criado?” _ perguntou O, tocada pela doçura da voz _ “e como você se chama?” “Eu me chamo Andreé.” “E eu, Jeanne”, disse a segunda. A primeira voltou a falar: “Pierre é o criado que tem as chaves, que deverá amarrá-la, desamarrá-la e chicoteá-la quando for punida ou quando não tiverem tempo para você”. “Estive na ala vermelha no ano passado”, disse Jeanne. “Ele já estava aí. Vinha sempre à noite; os criados têm as chaves e nos quartos que fazem parte da sua seção, têm direito de servir-se de nós.”
O ia perguntar como era esse Pierre mas não teve tempo. Numa curva do corredor fizeram-na parar diante de uma porta que em nada se distinguia das outras; e, sentado num banquinho entre esta porta e a seguinte, avistou uma espécie de camponês avermelhado, rechonchudo, com a cabeça quase toda raspada, pequenos e fundos olhos negros e rolinhos de gordura na nuca. Vestia-se como um criado de opereta: camisa de peitilho de rendas, colete negro e uma casaca vermelha. Suas calças eram eram negras, as meias brancas e as sapatilhas envernizadas. À cintura também trazia um chicote de tiras de couro. Suas mãos eram cobertas de pêlos ruivos. Tirando uma chave do bolso do colete, abriu a porta e fez as três mulheres entrarem, dizendo: “Vou fechar, chamem quando tiverem terminado”.
A cela era bem pequena e na realidade comportava duas peças. Fechada a porta, encontraram-se num vestíbulo que dava para a cela propriamente dita; na mesma parede havia outra porta abrindo para o banheiro; e, na frente das portas, uma janela. Na parede da esquerda, entre as portas e a janela, apoiava-se a cabeceira de uma grande cama quadrada, baixa e coberta de peles. Não havia outros móveis nem espelho. As paredes eram de um vermelho muito vivo e o tapete, negro. Andreé mostrou-lhe que a cama, na verdade, era uma plataforma acolchoada, coberta com um tecido negro de pêlos muito longos que imitava uma pele. O travesseiro, do mesmo material, era achatado e duro como o colchão, assim como a coberta de face dupla. O único objeto que havia na parede encontrava-se, com relação à cama, mais ou menos à mesma altura em que se encontrava o gancho fixado ao poste, com relação ao chão da biblioteca: era uma grande argola de ferro que ficava pendurada sobre a cama. Seus anéis amontoados formavam uma pequena pilha e a outra extremidade prendia-se, à altura da mão, a um gancho fechado por um cadeado, como um cortinado que se tivesse puxado e segurado com um braço.
_ Temos que lhe dar um banho _ disse Jeanne. _Vou ajudá-la a tirar o vestido. 
As únicas características particulares deste banheiro eram o assento à turca, no ângulo mais próximo da porta, e as paredes totalmente revestidas de espelhos. Andreé e Jeanne só deixaram O entrar quando já estava nua; guardaram seu vestido no armário perto do lavabo onde já se encontravam seus chinelos e sua capa vermelha, e entraram com ela, de modo que quando teve que se acocorar sobre o pedestal de porcelana encontrou-se, no meio de tantos reflexos, tão exposta quanto na biblioteca, quando mãos desconhecidas a violentavam. _ “Quando Pierre vier, você vai ver.”  _“Por que Pierre” _ “Quando vier acorrentá-la, provavelmente vai querer que fique aí de cócoras”. O sentiu que empalidecia. _ “Mas por quê?”, disse. _ “Será obrigada”, respondeu Jeanne, “mas você tem sorte”. “Por que sorte? “ _ “Foi seu amante quem a trouxe? “ _ “Sim”, disse O. _ “Serão muito mais duros com você”. _ “Não compreendo...” _ “Compreenderá logo. Vou chamar Pierre. Viremos buscá-la amanhã de manhã.”
Andrée sorriu ao sair e Jeanne, antes de segui-la, acariciou o bico de seus seios, deixando-a parada ao pé da cama, perturbada. Estava nua, vestindo apenas o colar e os braceletes de couro que a água do banho tinha endurecido, tornando-os mais apertados. _ “Então, bela dama”, disse o criado entrando. E, segurando suas mãos, fez com que os anéis dos seus braceletes escorregassem um no outro, o que uniu seus punhos estreitamente e prendeu estes dois anéis ao anel do colar. Encontrou-se portanto com as mãos unidas à altura do pescoço, como em prece. Em seguida acorrentou-a à parede com a corrente que repousava sobre o leito e passava pelo anel mais acima. Para encurtá-la, abriu o gancho que fixava sua outra extremidade, e puxou-o . O foi obrigada a aproximar-se da cabeceira da cama, onde ele a fez deitar-se. A corrente tilintava no anel e ficou tão esticada que a jovem só podia se movimentar na largura da cama ou ficar de pé junto à cabeceira. Como a corrente puxava o colar pelo lado mais curto, ou seja, para trás, e como as mãos a traziam para a frente, estabeleceu-se um equilíbrio: as mãos ficaram juntas sob o ombro esquerdo, para o qual a cabeça também se inclinou. O criado puxou sobre O a coberta negra, mas só depois de ter dobrado suas pernas até o peito para examinar entre suas coxas. Não mais a tocou, não disse uma palavra, desligou o interruptor de luz entre as duas portas e saiu.
Deitada do lado esquerdo, e sozinha no escuro e no silêncio, quente no seu acolchoado de peles e imobilizada à força, O perguntava-se por que tanta doçura misturava-se nela ao terror, ou por que o terror lhe era tão doce. Percebeu que uma das coisas mais dolorosas para ela era ter-lhe sido retirado o uso de suas mãos. Não que suas mãos pudessem defendê-la (e desejava defender-se?), mas livres, teriam esboçado o gesto, tentado rechaçar as mãos que se apoderavam dela, a carne que a atravessava, e teriam se colocado entre os quadris e o chicote. Tinham-na liberado de suas mãos: seu próprio corpo era-lhe inacessível sob as cobertas. Como era estranho não poder tocar seus próprios joelhos ou o seu ventre! Era-lhe proibido tocar os lábios entre as pernas, que a queimavam, talvez porque sabia-os abertos a quem quisesse: ao criado Pierre, por exemplo, se ele quisesse entrar. Admirava-se de que a lembrança do chicote a deixasse tão serena, quando o pensamento de que, sem dúvida, jamais saberia qual dos quatro homens por duas vezes tinha penetrado entre suas nádegas e que talvez fosse o seu amante, deixava-a tão transtornada. Escorregou um pouco sobre o ventre, lembrando como seu amante amava o sulco de suas nádegas e que, no entanto, com exceção desta noite (se tivesse sido ele), nunca possuíra. Desejou que tivesse sido ele; poderia lhe perguntar? Ah! Nunca! Reviu a mão que no carro tirara sua cinta-liga e suas calcinhas entregando-lhes as ligas para que enrolasse as meias acima dos joelhos. A imagem foi tão viva que se esqueceu de que tinha as mãos amarradas e fez com que a corrente que as prendia rangesse. E se era tão leve a lembrança do suplício, por que a simples idéia, a simples menção, a simples visão do chicote faziam com que seu coração batesse forte e seus olhos se fechassem de pavor? Não ficou muito tempo considerando se era apenas pavor, pois foi tomada de pânico: iriam puxar a corrente para pô-la de pé sobre a cama e a chicoteariam com o ventre colado à parede; e a chicoteariam, chicoteariam; a palavra rodopiava na sua cabeça. Pierre viria chicoteá-la, dissera Jeanne. E ainda dissera mais: “você tem sorte, serão muito mais duros com você”: que tinha querido dizer? Não sentia nada, além do colar, dos braceletes e da corrente, seu corpo partia à deriva; iria compreender. Dormiu.
Nas últimas horas da noite, quando ela é mais escura e mais fria, logo antes do amanhecer, Pierre apareceu novamente. Acendeu a luz do banheiro deixando a porta aberta, o que projetou um quadrado de claridade no meio da cama, no lugar em que o corpo de O, delicado e encolhido, enchia um pouco a coberta, que ele retirou em silêncio. Como O estivesse deitada para o lado esquerdo, com o rosto voltado para a janela e os joelhos ligeiramente levantados, oferecia ao seu olhar suas nádegas muito brancas sob o tecido negro da coberta. Então, retirando o travesseiro de baixo da sua cabeça, Pierre disse-lhe polidamente: “Poderia ficar de pé, por favor?”, e quando O ficou de joelhos tendo que agarrar-se à corrente para consegui-lo, ajudou-a segurando seus cotovelos para que se levantasse completamente  e se pusesse de frente para a parede. O reflexo da luz sobre a cama negra iluminava seu corpo, mas não os gestos dele. Adivinhou, entretanto, sem ter visto, que soltava a corrente do mosquete para prendê-la a um outro elo, a fim de que ficasse bem esticada, e sentiu que se esticava. Seus pés repousavam, nus, achatados sobre a cama. Também não viu que o que ele trazia à cintura não era o chicote de couro e sim a chibata negra, semelhante àquela com que lhe tinham batido apenas duas vezes, e quase de leve, quando se encontrava presa ao poste. A mão esquerda de Pierre afirmou-se em sua cintura e o colchão dobrou um pouco; apoiara nele o pé direito para conseguir um equilíbrio melhor. Ao mesmo tempo em que ouviu um sibilo na penumbra, O sentiu uma queimadura atroz percorrer seus quadris, e berrou. Pierre chicoteava-a com toda a força. Não esperou que se calasse, e por quatro vezes recomeçou, tomando o cuidado de açoitar sempre abaixo ou acima da vez anterior, para que as marcas ficassem nítidas. Quando terminou, ela ainda gritava, as lágrimas escorrendo pela boca aberta. “Pode se virar, por favor?”, disse, e como, atordoada, não lhe obedecia, segurou-a pelos quadris, sem largar a chibata, cujo cabo roçou sua cintura; quando ficou de frente, recuando um pouco, com toda a força desceu a chibata sobre suas coxas. Tudo isso durou cinco minutos. Quando finalmente saiu, depois de ter apagado a luz e fechado a porta do banheiro, O ainda gemia de dor, oscilando contra à parede na ponta da sua corrente, na escuridão. Até calar-se e permanecer imóvel junto à parede, cujo tecido brilhante era fresco à sua pele rasgada, passou-se todo o tempo que o dia demorou para amanhecer. A grande janela para a qual, apoiada de lado, estava virada, dava para o leste e, do teto ao chão, não tinha nenhuma cortina, a não ser o drapeado de ambos os lados, do mesmo  tecido vermelho que cobria a parede, e que se desdobrava em pregas verticais presas em faixas. O assistiu nascer uma lenta e pálida aurora que espalhava suas brumas sobre os tufos de astérias junto à janela, libertando finalmente um álamo. De tempos em tempos suas folhas amareladas caíam voltejando, embora não houvesse nenhum vento. Na frente da janela, depois do arbusto de astérias malvas, via-se um gramado, e, no fim do gramado, uma alameda. O dia estava totalmente claro, e há muito tempo O já não se mexia. Um jardineiro apareceu na alameda empurrando um carrinho de mão. Ouvia-se ranger a roda de ferro sobre o cascalho. Se tivesse se aproximado para varrer as folhas caídas junto às astérias, a janela era tão grande e a peça tão pequena e tão clara, que teria visto O acorrentada e nua e as marcas da chibata nas suas coxas.
As cicatrizes tinham inchado e formavam rolinhos estreitos, muito mais escuros que o vermelho das paredes. Onde estaria dormindo seu amante, como gostava de dormir nas manhãs calmas? Em seu quarto, em que cama? Saberia do suplício a que a entregara? Teria sido ele quem o decidira? O pensava nos prisioneiros, como os que se vêem nas gravuras dos livros de história, que também tinham sido acorrentados e chicoteados há muitos anos ou séculos, e que tinham morrido. Não desejou morrer, mas se o suplício era o preço a pagar para que seu amante continuasse a amá-la, desejou apenas que ele ficasse contente por tê-lo padecido e esperou, doce e calada, que a conduzissem para ele.
Nenhuma mulher tinhas as chaves das portas ou das correntes, ou as dos braceletes e dos colares, mas todos os homens possuíam, presas num anel, as três tipos de chaves que, cada uma no seu gênero, abriam todas as portas, todos os cadeados, ou todos os colares. Os criados também as possuíam, mas, pela manhã, os que tinham estado de serviço à noite dormiam e era um dos senhores ou algum outro criado que vinha abrir as fechaduras. O homem que entrou na cela estava vestido com um blusão de couro, calças de montaria, e usava botas. O não o reconheceu. Imediatamente, soltou a corrente da parede e ela pôde se deitar. Então, antes de desamarrar-lhe os pulsos, passou a mão entre suas coxas, como tinha feito o primeiro homem que vira na pequena sala vermelha, e que usava máscara e luvas. O rosto deste era ossudo e magro, o olhar direto como se vê nos retratos dos velhos huguenotes, e seus cabelos eram grisalhos. O agüentou seu olhar por um tempo que lhe pareceu interminável e, bruscamente gelada, lembrou-se de que era proibido olhar para os senhores acima da cintura. Fechou os olhos, mas já era tarde demais e escutou-o rir e dizer enquanto libertava finalmente suas mãos: “Anotem uma punição para depois do jantar”. Falava com Andreé e Jeanne que tinham entrado com ele e que esperavam, de pé,  cada uma de um lado da cama. Dito isto retirou-se. Andreé pegou o travesseiro que estava no chão e a coberta que Pierre tinha puxado para o pé da cama quqndo viera chicotear O, enquanto Jeanne trazia para a cabeceira uma mesa rolante que tinha sido colocada no corredor e que continha café, leite, açúcar, pão, manteiga e croissants. “Coma depressa”, disse Andreé; “são nove horas; depois poderá dormir até meio-dia, e quando ouvir tocar será o momento de aprontar-se para o almoço. Deverá tomar banho e pentear-se e eu virei fazer sua maquilagem e apertar seu espartilho. “ “Só terá serviço à tarde”, disse Jeanne; “na biblioteca, onde deverá servir o café, os licores e manter o fogo na lareira”. __ “Mas, e vocês?” , disse O . __ “Só estamos encarregadas de você nas primeiras vinte e quatro horas de sua estada, depois ficará sozinha e deverá tratar apenas com os homens. Não podemos falar com você, nem você conosco.” __ “Fiquem”, disse O, “fiquem um pouco mais, e digam-me...”, mas não teve tempo de acabar. A porta se abriu; era seu amante, e não estava sozinho. Era seu amante vestido como quando saía da cama e acendia o primeiro cigarro do dia: de pijama listrado e roupão de flanela azul, aquele mesmo roupão acolchoado e forrado de seda que tinham escolhido juntos um ano antes. E seus chinelos estavam gastos, precisava comprar outros. As mulheres desapareceram sem outro ruído que o farfalhar da seda quando levantaram suas saias (todas as saias arrastavam-se um pouco). Sobre o tapete não se escutavam os chinelos. O, com uma xícara de café na mão esquerda e na outra um croissant, sentada à beira da cama com uma perna pendurada e a outra dobrada, ficou imóvel, com a xícara subitamente tremendo em sua mão, enquanto o croissant caía. “Pegue-o”, disse René. Foi sua primeira palavra. Pondo a xícara sobre a mesa, O pegou o croissant caído e colocou-o ao lado da xícara. Uma migalha ficara no tapete, junto ao seu pé descalço e René abaixou-se por sua vez, pegando-a .Depois, sentou-se ao lado se O, derrubou-a na cama e a beijou. O perguntou-lhe se a amava. ”Ah! eu a amo”, respondeu. Levantou-se e, fazendo com que também levantasse, pousou docemente a palma fresca de sua mão e seus lábios ao longo das cicatrizes. Como viera com seu amante, O não sabia se podia ou não olhar o homem que entrara e, que por enquanto, dava-lhe as costas, fumando perto da porta. O que aconteceu em seguida não aliviou seu sofrimento. “Aproxime-se para que a vejamos”, disse seu amante. E, conduzindo-a para o pé da cama, comentou com seu companheiro que este tinha razão e agradeceu-lhe acrescentando que era justo que a possuísse primeiro, se tivesse esse desejo. O desconhecido, a quem não ousava olhar, depois de passar-lhe a mão sobre seus seios e suas nádegas, pediu-lhe que abrisse as pernas. ”Obedeça”, disse René; e manteve-se de pé, apoiada de costas nele próprio, que também estava de pé, acariciando seu seio com uma mão enquanto com a outra sustentava seu ombro. O desconhecido tinha se sentado na beira da cama e, puxando-a pelos pêlos, segurava e abria lentamente os lábios que protegiam a cavidade do ventre. René, ao compreender o que se queria dela, empurrou-a para a frente, para que ficasse mais ao alcance, e com o braço direito rodeou sua cintura oferecendo uma maior firmeza. O percebeu imediatamente que não escaparia a esta carícia que nunca aceitara sem se debater e ficar coberta de vergonha, da qual sempre se esquivara o mais rápido possível, tão rápido que mal tinha tempo de ser atingida, e que lhe parecia sacrílega porque parecia-lhe sacrílego que seu amante estivesse a seus joelhos, quando ela é quem devia estar aos seus. Viu-se perdida; pois gemeu quando os lábios estranhos que se apoiavam sobre o monte de carne que sai da corola interior inflamaram-na subitamente, só a deixando para que a ponta quente da língua a inflamasse mais ainda; e gemeu mais forte quando os lábios recomeçaram. Sentiu que a ponta escondida se endurecia e se levantava entre os dentes e os lábios que a uma longa mordida aspirava e não mais largava, e sob a qual ofegava. Sentiu que ainda perdia o equilíbrio e encontrou-se deitada de costas com a boca de René sobre sua boca; suas mãos mantinham seus ombros pregados na cama, enquanto duas outras mãos, segurando-a sob os joelhos, abriam e levantavam suas pernas. Suas próprias mãos que se encontravam sob suas nádegas (pois no momento em que René a empurrara para o desconhecido tinha amarrado seus pulsos juntando os anéis dos braceletes), suas próprias mãos roçaram o sexo do homem que se acariciava no sulco de suas nádegas, subia e ia bater no fundo de seu ventre. Ao primeiro golpe, gritou como sob o chicote e novamente gritava a cada golpe até seu amante morder-lhe a boca. Arrancando-se bruscamente, o homem finalmente deixou-a, e projetado ao chão como um raio, também ele gritou. René desamarrou então as mãos de O, levantou-a e deitou-a sob a coberta. Num relâmpago O viu-se libertada, aniquilada, maldita. Tinha gemido sob os lábios do estranho, como nunca seu amante a fizera gemer, tinha gritado sob o choque do membro do estranho como nunca seu amante a fizera gritar. Estava profanada e culpada. Seria justo que a abandonasse. Mas não, a porta se fechava e ele ficava com ela, voltava, deitava-se junto a ela sob a coberta, penetrava no seu ventre úmido e ardente e, mantendo-a assim abraçada, dizia-lhe: “Eu a amo. Quando a entregar também aos criados, virei uma noite para fazê-la chicotear até o sangue”. O sol tinha atravessado a bruma e inundava o quarto. Mas só foram despertados pela campainha do meio-dia.

Não soube o que  fazer. Seu amante  estava ali, tão próximo, tão meigo e abandonado como na cama do quarto de teto baixo onde costumava dormir ao seu lado, desde que começaram a morar juntos. A sua era uma grande cama em acaju de colunas à inglesa, mas sem baldaquim, sendo as colunas da cabeceira mais altas do que as do pé. René sempre dormia à esquerda e quando acordava, mesmo que fosse no meio da noite, estendia a mão para as suas pernas. Era por este motivo que ela só usava camisolas e, se usava pijama, nunca punha as calças. Fez como de costume e O, segurando essa mão, beijou-a sem ousar perguntar-lhe nada. Mas ele falou. Segurando-a pelo colar, com dois dedos enfiados entre o couro e o pescoço, falou-lhe que de agora em diante queria compartilhá-la com aqueles que escolhesse e com aqueles que ele próprio não conhecia e que eram filiados à sociedade do castelo, como tinha acontecido na noite anterior; que ela dependia dele e só dele, mesmo se recebesse ordens de outros, estivesse ele presente ou ausente, pois, em princípio, participava de qualquer coisa que se exigisse dela ou que se lhe infligisse, e que era ele quem a possuía e quem usufruía dela através daqueles em cujas mãos tinha sido entregue, simplesmente porque fora ele quem a entregara. Devia ser-lhes submissa e recebê-los com o mesmo respeito com que o recebia, como se fossem outras formas dele mesmo. Assim, possuí-la-ia, como um deus possui suas criaturas, das quais se apodera sob a máscara de um monstro ou de um pássaro, do espírito invisível ou do êxtase. Não queria separar-se dela. Quanto mais a entregava, mais sentia-se ligado a ela. O fato de que a entregava era para ele uma prova, como devia ser também para ela, de que lhe pertencia; só se dá aquilo que se possui. Dava-a, para retomá-la em seguida, e retomá-la enriquecida aos seus olhos, como um objeto comum que tivesse uma função divina e que, por causa dessa função, fosse consagrado. Há muito tempo desejava prostituí-la e sentia com alegria que o prazer que experimentava era maior do que tinha esperado e que, quanto mais fosse humilhada e maltratada, mais se ligaria a ela, assim como ela a ele. Como ela o amava, só podia amar o que vinha dele. O escutava e tremia de felicidade, pois ele a amava; tremia e consentia. Sem dúvida René adivinhou, pois continuou: “Como é fácil para você consentir, quero algo que lhe seja impossível consentir, mesmo que consinta antes, mesmo que diga sim agora e que se imagine capaz de submeter-se. Não poderá deixar de se revoltar. Sua submissão será obtida apesar de você, não apenas pelo incomparável prazer que eu ou outros encontrarão nisso, como para que tome consciência do que fizeram com você”. O ia responder que era sua escrava e que suportava com alegria essa escravidão, mas ele a interrompeu: ”Disseram-lhe ontem que enquanto estivesse no castelo não deveria olhar para um homem no rosto, nem lhe falar. O mesmo deve fazer comigo; deve apenas calar-se e obedecer. Amo-a . Levante-se. De agora em diante só abrirá a boca na presença de um homem para gritar ou para acariciar”. O levantou-se. René continuou deitado. Ao tomar seu banho, estremeceu quando mergulhou os quadris machucados na água quente e teve que passar esponja sem esfregar para não despertar o ardor. Depois, penteou-se, pintou a boca mas não os olhos, maquilou o rosto e sempre nua, mas de olhos baixos, voltou para a cela. René olhava Jeanne que tinha entrado e que se encontrava de pé à cabeceira da cama, também de olhos baixos e calada. Disse-lhe para vestir O . Jeanne pegou o espartilho de cetim verde, a anágua branca, o vestido, os chinelos verdes e, tendo abotoado o espartilho na frente, começou a apertar os cordões às costas. O espartilho era longo e rígido, armado com duras barbatanas, como no tempo das cinturas de vespa e possuía um porta-seios. À medida que era apertado os seios subiam, apoiando-se na parte  de baixo do porta-seios e oferecendo mais ainda seus bicos. Enquanto isso, a cintura estrangulada fazia saltar o ventre e as nádegas tornarem-se muito empinadas. O estranho é que esta armadura era bastante confortável e, até certo ponto, repousante. Tinha-se que ficar bem ereta mas, sem que se soubesse muito bem por que, a menos que fosse por contraste, tornava mais sensível a liberdade, ou melhor, a disponibilidade do que não comprimia. A saia longa e o corpete decotado em trapézio da base do pescoço até os bicos dos seios e em toda a sua amplitude, davam-lhe a impressão de que vestia menos uma proteção do que um aparato de provocação, ou de apresentação. Quando Jeanne terminou de amarrar os cordões com um nó duplo, O pegou sobre a cama o vestido, que era uma peça só, a anágua, presa à saia como um forro removível e o corpete, cruzado na frente e amarrado atrás, podendo acompanhar assim a linha mais ou menos fina do busto, conforme se tivesse apertado mais ou menos o espartilho. Jeanne tinha apertado bastante e O via-se no espelho do banheiro, pela porta aberta, franzina e perdida no espesso cetim verde que caía em gomos sobre seus quadris, como se fossem balaios. As duas mulheres estavam de pé, uma ao lado da outra. Jeanne estendeu o braço para retificar uma dobra na manga do vestido verde e seus seios moveram-se na renda que bordava seu corpete, seios que tinham o bico comprido e a auréola escura. Seu vestido era de palha de seda amarela. René, que tinha se aproximado das mulheres, disse a O: “Olhe”. E a Jeanne: “Levante o seu vestido”. Levantando com ambas as mãos a seda farfalhante e a cambraia que a forrava, ela descobriu o ventre dourado, as coxas e os joelhos brilhantes e  o triângulo negro bem delimitado. René colocou aí sua mão, acariciando-o lentamente, enquanto com a outra mão libertava o bico de um seio. “É para que você veja”, disse a O . O via. Via seu rosto irônico, mas atento, seus olhos que espreitavam a boca entreaberta de Jeanne e seu  pescoço inclinado que o colar de couro apertava. Que prazer podia lhe dar que esta, ou qualquer outra, não lhe desse também? “Ainda não tinha pensado nisto?”, perguntou René. Não, não tinha pensado. Apoiara-se na parede entre as duas portas, rígida, com os braços caídos. Não havia mais necessidade de ordenar-lhe que se calasse. Como poderia falar? Talvez seu desespero o tenha tocado, pois deixou Jeanne para tomá-la entre os braços, chamando-a de seu amor e de sua vida e repetindo que a amava. A mão com que acariciava seu colo e seu pescoço estava umedecida e com o odor de Jeanne. E daí? O desespero em que se afogara retrocedeu; ele a amava, ah! Ele a amava! Era livre para procurar seu prazer em Jeanne ou em outras, mas a amava. “Eu o amo”, dizia O ao seu ouvido, “eu o amo”, tão baixo que ele mal podia ouvi-la. “Eu o amo”. Finalmente partiu, mas só quando a viu doce, com os olhos claros e feliz.
Jeanne tomou O pela mão e conduziu-a para o corredor. Novamente ouviu-se o ruído de seus chinelos nos ladrilhos e novamente encontraram um criado sentado numa banqueta entre as portas. Vestia-se como Pierre, mas não era ele. Era grande, seco, com pêlos negros. Caminhando à sua frente, conduziu-as a um vestíbulo, onde entraram. Diante de uma porta de ferro forjado que se destacava entre grandes cortinas verdes, dois criados esperavam. Tinham cães brancos com manchas vermelhas aos seus pés. “É o claustro”, murmurou Jeanne. Mas o criado que caminhava à frente ouviu-a e voltou-se. O viu com estupor que jeanne tornou-se muito pálida e, largando sua mão e seu vestido que segurava levemente com a outra mão, caiu de joelhos sobre a laje negra. Os dois criados que se encontravam perto da lareira começaram a rir. Um deles aproximou-se de O pedindo-lhe que o seguisse, abriu uma porta na frente da que tinham acabado de passar, e desapareceu. O ainda ouvia risadas e percebeu o som de passos. Depois a porta fechou-se atrás dela e nunca, mas nunca, soube o que tinha acontecido; se Jeanne tinha sido punida por ter falado, nem como, ou se tinha apenas cedido a algum capricho do criado e atirando-se de joelhos tinha obedecido a alguma regra, ou desejado e conseguido comovê-lo. Percebeu apenas, durnate sua primeira semana estada no castelo, que durou duas semanas, que embora a ordem de silêncio fosse absoluta, era raro que durante as idas e vindas, ou durante as refeições, não se tentasse infringi-la, particularmente durante o dia e só na presença dos criados, como se as roupas dessem uma segurança que a nudez, as correntes da noite e a presença dos senhores anulavam. Percebeu também que, enquanto o menor gesto que pudesse parecer um atrevimento para com algum dos senhores fosse naturalmente inconcebível, o mesmo não acontecia com relação aos criados. Estes nunca davam uma ordem, embora a polidez de seus pedidos fosse tão implacável quanto as ordens. Aparentemente tinham ordem para punir imediatamente as infrações à regra, mesmo quando eram as únicas testemunhas. Assim, em três ocasiões, uma vez no corredor que conduzia à ala vermelha e as duas outras no refeitório onde acabavam de levá-la, O viu mulheres que tinham sido surpreendidas falando, serem jogadas ao chão e chicoteadas. Era possível portanto ser chicoteada em pleno dia, apesar do que lhe tinha sido dito na primeira noite, como se o que acontecia com os criados não devesse contar, mas ser deixado à sua decisão. O dia conferia ao traje dos criados um aspecto estranho e ameaçador. Alguns usavam meias negras e, em vez da casaca vermelha e do peitilho branco, vestiam uma camisa leve de seda vermelha franzida no pescoço e com mangas amplas abotoadas nos punhos. Foi um desses criados que, no oitavo dia, ao meio-dia, com o chicote já na mão, fez com que levantasse de seu banquinho, ao lado de O, uma opulenta Madalena loira, com um colo de leite e de rosas, que tinha lhe sorrido e dito algumas palavras, tão depressa que O não as tinha compreendido. Antes mesmo que a tocasse, ela já se encontrava aos seus joelhos, as mãos, tão brancas, procurando sob a seda negra o sexo ainda em repouso, que libertava e aproximava de sua boca entreaberta. Não foi chicoteada desta vez. E como neste momento ele fosse o único vigilante no refeitório e como, à medida que recebia a carícia ele fosse fechando os olhos, as outras mulheres aproveitaram para falar. Era possível, portanto, subornar os criados. Mas para quê? Se havia uma regra à qual O se dobrava com mais dificuldade, e finalmente nunca dobrou-se completamente, era a que proibia olhar os homens no rosto - pelo fato de que também era aplicável aos criados. O sentia-se em constante perigo, de tal modo que era devorada pela curiosidade pelos rostos e efetivamente foi chicoteada por um ou outro quando o percebiam; não tanto, na verdade (pois tomavam liberdades com a ordem, e talvez gostassem o suficiente da fascinação que exerciam, para não se privarem por um rigor absoluto e eficaz dos olhares que só deixavam seus olhos e sua boca para voltarem ao sexo, a seu chicote, a suas mãos, e recomeçarem) mas certamente sempre que tinham vontade de humilhá-la. Por mais cruelmente que a tivessem tratado quando decidiam fazê-lo, nunca teve a coragem, ou a covardia, de atirar-se por si mesma aos seus joelhos e, se às vezes suportou-os, nunca os solicitou. Quanto à regra do silêncio, salvo com relação ao seu amante, era-lhe tão leve que nunca a infringiu, respondendo por sinais quando alguma das moças aproveitava-se de um momento de distração dos guardas para lhe falar. Essas coisas aconteciam geralmente durante as refeições, que tinham lugar na sala para onde tinham-na levado na ocasião em que o criado alto que as acompanhava voltara-se contra Jeanne. As paredes do refeitório eram negras, assim como o piso e a mesa comprida de vidro grosso, e cada moça tinha um banquinho redondo coberto de couro negro onde se sentava. Para sentar-se, tinham que levantar a saia e, nesse momento, O reencontrava, no contato com o couro liso e frio sob suas coxas, aquele primeiro instante em que seu amante a fizera tirar as meias e a calcinha e sentar-se dessa maneira no banco do carro. Inversamente,  quando deixou o castelo e, vestida como todo o mundo mas com as nádegas nuas sob o tailler banal ou o vestido comum, teve que levantar a combinação e a saia cada vez que se sentava ao lado de seu amante ou de algum outro, era o castelo que  reencontrava, os seios oferecidos nos espartilhos de seda, as mãos e as bocas que tudo se permitiam e o terrível silêncio. Nada entretanto foi-lhe de tanto socorro quanto este silêncio, quando não as correntes. As correntes e o silêncio, que deveriam amarrá-la no fundo de si mesma, estrangulá-la, sufocá-la, ao contrário, liberavam-na de si mesma. Que teria acontecido se a palavra lhe tivesse sido concedida, se lhe tivesse sido deixada uma escolha quando seu amante a prostituía diante dele? É verdade que durante os suplícios ela falava, mas pode-se chamar palavras o que não passa de lamentos e gritos? Mesmo assim, muitas vezes faziam-na calar-se, amordaçando-a . Sob os olhares, sob as mãos e os sexos que a ultrajavam, sob os chicotes que a rasgavam, perdia-se numa delirante ausência de si mesma que a entregava ao amor, aproximando-a talvez da morte. Tornava-se qualquer uma, podia ser qualquer  das moças, como elas abertas e violentadas e que via abrirem e violentarem, pois via tudo isso, quando ela própria não tinha que ajudar. No dia seguinte, que foi seu segundo dia, quando ainda não tinham se passado vinte e quatro horas desde a sua chegada, foi, portanto, conduzida à biblioteca para aí fazer o serviço do café e da lareira.
Acompanhava-a Jeanne, que o criado de pêlos negros tinha trazido de volta, e uma outra moça que se chamava Monique. Foi o mesmo criado quem as trouxe, permanecendo de pé no recinto, junto ao poste onde O tinha sido amarrada. A biblioteca ainda estava deserta. As portas e janelas davam para oeste, e o sol do outono, que lentamente girava num céu tranqüilo e com poucas nuvens, iluminava, sobre uma cômoda, um grande ramo de crisântemos cor de enxofre que cheiravam a terra e a folhas mortas. “Pierre marcou-a ontem à noite?”, perguntou o criado. O respondeu que sim com um sinal. “Você deve mostrar então”, disse, “queira levantar seu vestido, por favor”. Esperou que ela enrolasse o vestido por trás como Jeanne tinha feito na noite anterior, e que Jeanne a ajudasse a prendê-lo. E disse-lhe em seguida para acender o fogo. As nádegas de O, descobertas até a cintura, suas coxas e suas pernas delicadas, enquadravam-se nas dobras em cascata da seda verde e da cambraia branca. As cinco cicatrizes estavam negras. O fogo já estava preparado na lareira e O teve apenas que acender a palha com um fósforo, sob os gravetos que se inflamaram. Os ramos de macieira logo pegaram, depois as achas de carvalho que queimavam em altas chamas crepitantes e claras, quase invisíveis durante o dia, mas perfumadas. Um outro criado entrou e colocou sobre o console, uma bandeja com xícaras e café, retirando-se em seguida. O aproximou-se do console. Monique e Jeanne ficaram de pé, uma de cada lado da lareira. O pensou ter reconhecido, pela voz, um dos homens que a tinham violentado na véspera, aquele que tinha pedido que se tornasse mais fácil o acesso às suas nádegas. Observava-o de soslaio, enquanto vertia o café nas pequenas xícaras pintadas em negro e ouro que Monique ofereceu, junto com o açúcar.  Teria sido então este rapaz franzino, tão jovem e louro, que tinha o aspecto de um inglês? Mas ele continuava falando e já não teve mais dúvidas. O outro também era louro, atarracado, com aspecto mais pesado. Sentaram-se nas grandes poltronas de couro com os pés diante do fogo e fumaram tranqüilamente lendo seus jornais sem mais se preocuparem com as mulheres, como se não estivessem ali. De vez em quando ouvia-se o barulho de um papel sendo amassado, e das brasas que caíam. De tempos em tempos, O colocava uma acha no fogo. Estava sentada sobre uma almofada no chão, ao lado de uma cesta de lenhas. Monique e Jeanne também se sentavam no chão, à sua frente, e suas saias espalhadas misturavam-se. A de Monique era vermelha escura. De repente, mas só depois de já ter passado uma hora, o rapaz louro chamou Monique e Jeanne e disse-lhes que trouxessem o tamborete. (Era o tamborete onde O tinha sido derrubada de bruços, na véspera). Monique não esperou outras ordens; ajoelhou-se, e inclinou-se sobre o tamborete, esmagando o busto e agarrando-se dos lados com as duas mãos. Quando o rapaz mandou Jeanne ir levantar sua saia vermelha, não se mexeu. Jeanne então (e a ordem foi dada nos termos mais brutais) teve que abrir sua roupa e tomar em suas mãos aquela espada de carne que pelo menos uma vez atravessara O tão cruelmente. Dentro da palma fechada inchou e endureceu e O viu essas mesmas mãos, as mãos pequenas de Jeanne, apartando as coxas de Monique, entre as quais, lentamente e com pequenos impulsos que a faziam gemer, o rapaz penetrou. O outro homem que assistia sem dizer nada, fez sinal a O para aproximar-se e sem parar de olhar, inclinando-a para frente sobre o braço da poltrona - a saia levantada oferecia-lhe toda a amplitude de suas nádegas - penetrou em seu ventre com toda sua mão. Foi assim que René a encontrou um minuto depois quando abriu a porta. “Não se mexa por favor”, disse, e sentou-se no chão junto à lareira, na almofada em que O estivera sentada antes que a chamassem. Olhava-a atentamente e sorria todas as vezes em que a mão a segurava, penetrava e voltava, apoderando-se ao mesmo tempo de seu ventre e se suas nádegas que se abriam cada vez mais, e arrancando-lhe um gemido que não podia reter. Monique já tinha se levantado há muito tempo, Jeanne atiçava o fogo no lugar de O, trouxe para René, que beijou-lhe a mão, um copc de uísque que ele bebeu sem tirar os olhos de O . Então o homem que continuava segurando-a disse: “É sua?”. “Sim”, respondeu René. “Jacques tem razão”, continuou o outro, “é muito estreita, precisamos alargá-la”. “Não demais, também”, disse Jacques. “À vontade”, falou René levantando-se, “você é melhor juiz do que eu”. E tocou a campainha.
E desde então, durante oito dias, entre o momento em que, no final do dia, terminava seu serviço na biblioteca e o momento em que, entre oito e dez horas, era trazida, acorrentada e nua sob sua capa vermelha, O usava, fixado no centro de suas nádegas por três correntinhas penduradas num cinto de couro que rodeava seus quadris, para que o movimento interno dos músculos não o pudesse rejeitar, um cilindro de ebonite que imitava um sexo levantado. Uma dessas pequenas correntes acompanhava o sulco das nádegas, e as outras duas o interior das coxas, dos dois lados do triângulo do ventre, a fim de não impedirem a penetração sempre que se quisesse. René tocara a campainha para mandar trazer um pequeno cofre onde num dos compartimentos havia uma provisão de correntinhas e de cintos e no outro uma variedade destes cilindros  que iam dos mais estreitos aos mais grossos. Todos eles alargavam-se na base para assegurar que não subiriam para o interior do corpo, o que arriscaria deixar-se fechar novamente o círculo de carne que deviam forçar e distender. O ficou assim, aberta, e cada vez mais, pois todos os dias Jacques ordenava que a pusessem de joelhos, ou melhor, que a prostrassem,  para cuidar de que Jeanne, Monique ou qualquer outra que estivesse por aí, fixassem o cilindro que tinha escolhido, e escolhia-o sempre mais grosso do que o anterior. Durante a refeição da noite, junto com outras moças, no refeitório para onde iam depois do banho, nuas e maquiladas, O ainda o usava, e pelas correntes e pelo cinto, todos podiam ver que o usava. Só Jacques o retirava, no momento em que Pierre vinha acorrentá-la, na parede, para passar a noite quando ninguém vinha solicitá-la, ou com as mãos às costas quando a conduziam à biblioteca. Foram raras as noites em que ninguém apareceu para utilizar este caminho que em pouco tempo tinha se tornado tão fácil, embora continuasse mais estreito do que o outro. Depois de oito dias não foi mais necessário e seu amante veio dizer-lhe que se sentia feliz por encontrá-la duplamente aberta e que cuidaria de que permanecesse assim. Avisou-lhe ainda que ia partir e que não o veria durante esses últimos sete dias em que deveria ficar no castelo, antes que ele retornasse para levá-la de volta a Paris. “Mas eu a amo”, acrescentou, “eu a amo, não me esqueça”. Ah! E como o esqueceria, se ele era a mão que lhe vendava os olhos, o chicote do criado Pierre, a corrente sobre a cama, o desconhecido que mordia o fundo do seu ventre, e se todas as vozes que lhe davam ordens eram a sua voz? Cansava-se? Não. De tanto ser ultrajada, deveria habituar-se aos ultrajes, de tanto ser acariciada, às carícias, quando não ao chicote, de tanto ser chicoteada. Uma terrível saciedade da dor e da volúpia poderia transportá-la pouco à pouco a regiões insensíveis, próximas do sono ou do sonambulismo. Mas o que acontecia era o contrário. O espartilho que a mantinha ereta, as correntes que a mantinham submissa e o silêncio que era seu refúgio, de alguma forma não o permitiam, assim como o espetáculo constante das moças violentadas como ela, e mesmo quando não eram violentadas, de seus corpos constantemente acessíveis. Também não o permitiam o espetáculo e a consciência de seu próprio corpo. Todos os dias, e como num ritual, por assim dizer, suja de saliva, de esperma e do suor misturado ao seu próprio suor, sentia-se literalmente o receptáculo da impureza, o esgoto de que falam as escrituras. No entanto, as partes do seu corpo mais constantemente ofendidas e que tinham se tornado mais sensíveis, pareciam-lhe ao mesmo tempo mais belas, e como enobrecidas; sua boca que se fechava sobre sexos anônimos, os bicos dos seus seios constantemente acariciados por muitas mãos e os caminhos do seu ventre entre as coxas abertas, estradas abertas pelo prazer. Admirava-se de que ao ser prostituída viesse a ganhar em dignidade e no entanto tratava-se de dignidade. Sentia-se como iluminada por dentro e via-se, no seu modo de andar, a calma, e no seu rosto, a serenidade e o imperceptível sorriso interior que se adivinha nos olhos das reclusas.
A noite já tinha chegado quando René lhe disse que ia deixá-la. O estava nua em sua cela esperando que viessem buscá-la para ir ao refeitório. Seu amante vestia-se como de costume, com a roupa que usava todos os dias para ir à cidade. Quando a tomou nos braços O sentiu o tweed de seu casaco que roçava o bico dos seus seios. Ele a beijou e deitando-a na cama, deitou-se ao seu lado. Então, possuiu-a ternamente, lenta e docemente, indo e vindo pelos dois caminhos que lhe eram oferecidos, para finalmente gozar em sua boca, que em seguida beijou. “Antes de partir gostaria de mandar chicoteá-la” disse “e desta vez lhe pergunto: você aceita?” Aceitou. “Eu a amo” , repetiu; “agora, chame Pierre”. Ela chamou. Pierre veio e amarrou suas mãos acima da cabeça, na corrente da cama. Quando estava assim amarrada, seu amante beijou-a mais uma vez, de pé sobre a cama ao seu lado e ainda uma vez repetiu que a amava; depois desceu da cama e fez sinal a Pierre. Viu-a debater-se tão inutilmente, escutou seus gemidos tornarem-se gritos e quando finalmente as lágrimas correram, dispensou Pierre. Ela ainda encontrou forças para dizer-lhe mais uma vez que o amava. Beijando então seu rosto molhado e sua boca ofegante, René desamarrou-a, deitou-a e partiu.
Dizer que O começou a esperar por seu amante no mesmo instante em que este a deixou é dizer pouco, pois, desde esse momento, não foi mais do que espera e noite. Durante o dia não passava de uma imagem pintada, cuja pele é doce e a boca dócil, e - foi o único tempo em que observou estritamente esta regra - que mantinha os olhos sempre abaixados. Acendia e alimentava o fogo, oferecia o café e a bebida, acendia os cigarros, arrumava as flores e dobrava os jornais, como uma mocinha no salão de seus pais, tão límpida com seu colo descoberto, seu colar de couro, seu espartilho apertado e seus braceletes de prisioneira que bastava ficar ao lado dos homens, quando estes exigiam, ao violentarem alguma outra moça, para que quisessem violentá-la também; foi por isso, talvez, que a maltrataram ainda mais. Teria cometido algum erro? Ou seu amante a tinha deixado justamente para que aqueles a quem emprestava se sentissem mais livres para disporem dela? Assim é que uma tarde, dois dias depois de sua partida, quando acabava de tirar a roupa e olhava no espelho de seu banheiro as marcas já quase apagadas da chibata de Pierre na parte da frente das coxas, Pierre entrou. Ainda faltavam duas horas para o jantar. Avisando-a de que não jantaria no refeitório como de costume, disse-lhe para aprontar-se, mostrando-lhe o vaso à turca no canto do banheiro, onde com efeito teve que ficar de cócoras como Jeanne lhe dissera que teria que fazer na presença de Pierre. Durante todo o tempo em que permaneceu aí, ele a observava e ela via-o nos espelhos, assim como a si mesma, incapaz entretanto de reter o líquido que escapava do seu corpo. Em seguida, ele esperou que tomasse seu banho e que se maquilasse. E, quando ela foi buscar seus chinelos e sua capa vermelha, interrompeu seu gesto e, amarrando suas mãos às costas, mandou-a esperar um pouco. O sentou-se na beira da cama. Fora havia uma tempestade de ventos frios e de chuva e o álamo perto da janela curvava-se e novamente se alteava sob as rajadas. De tempos em tempos algumas folhas pálidas e molhadas grudavam nos vidros. Estava escuro como no coração da noite embora ainda não fossem sete horas, mas o outono estava adiantado e os dias se encurtavam. Quando voltou, Pierre trazia nas mãos a mesma venda com que tinham tapado seus olhos na primeira noite. Trazia, também, uma longa corrente barulhenta, semelhante à da parede. Parecia que hesitava entre pôr-lhe primeiro a corrente, ou a venda. Indiferente ao que se fizesse com ela, O olhava a chuva, pensando apenas que René tinha dito que voltaria, que ainda faltavam cinco dias e cinco noites, que não sabia onde se encontrava, se estava sozinho e, se não estivesse, com quem estaria. Mas voltaria. Pierre colocara a corrente sobre a cama e, sem perturbar os sonhos de O, punha sobre seus olhos a venda de veludo negro, que se avolumava um pouco abaixo das órbitas, aplicando-se exatamente sobre as maças do rosto e impossibilitando que por aí se deslizasse o mínimo olhar ou que as pálpebras pudessem se levantar. Bendita noite, semelhante à sua própria noite, jamais a tinha acolhido com tanta alegria, benditas correntes que a arrancavam de si mesma! Pierre prendeu a corrente no anel do seu colar e pediu-lhe que o acompanhasse. O levantou-se, sentiu que era empurrada para a frente, e caminhou. Seus pés nus ficaram gelados no ladrilho e compreendeu que seguia o corredor da ala vermelha; depois o chão, sempre frio, tornou-se áspero: caminhava sobre um pavimento de pedra, cerâmica ou granito. Por duas vezes o criado a fez parar: escutou o ruído de uma chave girando numa fechadura que foi aberta e depois novamente trancada. “Cuidado com os degraus”, disse Pierre. Começou a descer uma escada, mas tropeçou. Pierre segurou-a com força. Nunca a tinha tocado antes, a não ser para acorrentá-la ou para lhe bater, mas nesse momento deitou-a nos degraus frios onde, para não escorregar, O agarrava-se o melhor que podia com as mãos presas, e pegou seus seios. Sua boca ia de um para o outro, e ela percebeu que, enquanto apoiava-se nela, lentamente ia se enrijecendo. Só a levantou quando tinha acabado de usá-la à vontade. Molhada e tremendo de frio, descera finalmente os últimos degraus, quando ouviu que mais uma porta se abria e, assim que passou por ela, sentiu sob os pés um tapete espesso. Mais uma vez a corrente foi esticada e, em seguida, as mãos de Pierre desamarraram suas mãos e tiraram sua venda. Encontrava-se num compartimento redondo e abobadado, muito pequeno e baixo; as paredes e a abóbada eram de pedra e viam-se as juntas de alvenaria. A corrente que estava presa ao seu colar, prendia-se também à parede na frente da porta, por uma argola fixada a um metro de altura e só lhe permitia dar dois passos para a frente. Não havia cama, nem simulacro de cama, nem coberta, apenas três ou quatro almofadas marroquinas, mas fora de seu alcance, e que não lhe eram destinadas. Entretanto, ao seu alcance, num nicho de onde partia o pouco de luz que iluminava a peça, encontrava-se uma bandeja de madeira com água, frutas e pão. O calor dos aquecedores que tinham sido dispostos na base e no meio das paredes e que formavam uma espécie de plataforma ardente à sua volta, não era suficiente, entretanto, para eliminar o odor de limo e de terra que é o odor das antigas prisões nas torres desabitadas dos velhos castelos. Nesta penumbra quente onde nenhum ruído penetrava, O logo perdeu a noção do tempo. Não havia mais dia nem noite, a luz nunca se apagava. Pierre, ou qualquer outro criado, indiferentemente, vinha pôr água, frutas e pão na bandeja quando tinha acabado, e levá-la para banhar-se numa habitação contígua. Nunca viu os homens que entravam, pois todas as vezes um criado vinha antes para vendar seus olhos e só retirava a venda quando tinham saído. O também esqueceu quantos foram, e suas doces mãos e seus lábios acariciando às cegas jamais souberam reconhecer a quem estavam tocando. Às vezes eram muitos, mais freqüentemente vinham sozinhos, mas todas as vezes, antes de se aproximarem, era posta de joelhos diante da parede, com o anel do seu colar pendurado na mesma argola onde já se encontrava fixada a corrente, e chicoteada. Colocava então as palmas das mãos contra a parede, apoiando nelas o rosto para não arranhá-lo na pedra; mas mesmo assim ainda escoriava os joelhos e os seios. Também perdeu a conta dos suplícios e dos gritos que a abóbada abafava. Esperava....
De repente o tempo deixou de ser imóvel. Em sua noite de veludo soltavam sua corrente. Fazia três meses, três dias, dez dias ou dez anos, que esperava. Sentiu que a envolviam num tecido grosso e que alguém, segurando-a pelos ombros e pelos tornozelos, levantava-a e a levava. Reencontrou-se em sua cela, deitada sob a coberta negra. Era o começo da tarde, seus olhos estavam abertos, suas mãos livres e René, sentado ao seu lado, acariciava seus cabelos.”Deve se vestir”, disse, “vamos partir”. Tomou então um último banho, e ele escovou seus cabelos entregando-lhe seu pó-de-arroz e seu batom. Quando ela voltou à cela, encontrou sobre a cama seu tailler, sua blusa, sua combinação, suas meias e seus sapatos, assim como a bolsa e as luvas. Encontrou até o casaco que costumava usar sobre o tailler quando começava a esfriar, e um lenço de seda para proteger o pescoço. Mas não estavam aí nem sua cinta-liga, nem suas calcinhas. Vestiu-se lentamente, enrolando as meias acima dos joelhos e sem vestir o casaco, pois fazia muito calor na cela. Neste momento, entrou na cela o homem que na primeira noite tinha lhe explicado o que lhe seria exigido e retirou seu colar e os braceletes que há duas semanas mantinham-na cativa. Estaria enfim livre? Ou ainda faltaria alguma coisa? Não disse nada, ousando apenas passar as mãos sobre os punhos, sem ousar levá-las ao pescoço. Em seguida o homem mostrou-lhe vários anéis iguais num pequeno cofre de madeira e mandou que escolhesse o que servisse melhor no seu anular esquerdo. Eram curiosos anéis de ferro folheados a ouro no interior e com um engaste grande e pesado - como o de uma chevalière (um tipo de anel grande e pesado) - porém mais alto, contendo em ouro o desenho de uma espécie de roda semelhante à roda solar dos celtas, com três ramificações, que se fechavam em espiral. O segundo que experimentou, forçando um pouco, coube exatamente. Era pesado em sua mão, e o ouro brilhava furtivamente no cinza fosco do ferro polido. Por que o ouro, por que o ferro, por que este signo que não compreendia? Mas, neste aposento revestido de vermelho onde a corrente ainda se encontrava pendurada acima da cama e a coberta negra caída ao chão e onde o criado Pierre podia entrar, ia entrar, absurdo em seu traje de ópera à luz velada de novembro, não era possível falar. Enganava-se: Pierre não entrou. René ajudou-a a vestir o casaco do tailler e as longas luvas que cobriam seus pulsos. O pegou seu lenço de seda, sua bolsa e seu casaco de inverno. Os saltos de seus sapatos faziam menos barulho sobre o ladrilho do corredor do que os chinelos que usara. As portas estavam fechadas, o vestíbulo vazio. O segurava a mão de seu amante. O desconhecido que os acompanhava abriu as mesmas grades que Jeanne uma vez dissera serem do claustro e que não mais estavam guardadas por criados e por cães, puxou uma das cortinas  de veludo verde, e deu-lhes passagem. A cortina fechou-se novamente. Ouviu-se a grade sendo fechada. Estavam sozinhos num outro vestíbulo que dava para um parque. Só faltava descer os degraus da escadaria diante da qual O reconheceu o carro. Sentou-se ao lado de seu amante que tomou o volante e partiu. Saíram do parque cujo portão encontrava-se totalmente aberto, e tendo rodado algumas centenas de metros, ele parou  para beijá-la. Isso aconteceu um pouco antes de um tranqüilo vilarejo por onde passaram em seguida. O pôde ler o nome da placa indicadora: Roissy


CAPÍTULO 2 - SIR STEPHEN   

O apartamento em que O morava ficava sobre o Sena, na île Saint-Louis, na cobertura de uma velha casa que dava para o sul. Eram cômodos de mansarda, grandes e baixos e os dois da fachada possuíam terraços construídos no declive do telhado. Um deles era o quarto de O, e o outro, onde prateleiras  de livros enquadravam a lareira do chão até o teto, servia de sala, de escritório, e até de quarto se fosse necessário; havia um grande sofá na frente das duas janelas, e diante da lareira, uma mesa grande e antiga. Aí também se podia jantar, quando a pequenina sala de jantar revestida de sarja verde-escura, que dava para o pátio interno, tornava-se pequena demais para os convivas. Um outro quarto, que também dava para o pátio, era usado por René, que aí guardava suas roupas e se vestia. O repartira com ele seu banheiro amarelo; a cozinha, também amarela, era minúscula. Todos os dias vinha uma mulher fazer a limpeza. Os cômodos, que davam para o pátio, eram ladrilhados de vermelho, com esses antigos azulejos de seis lados que cobrem, a partir do segundo andar, as escadas e os corredores dos velhos hotéis de Paris. Ao revê-los, O sentiu um choque no coração: eram os mesmos azulejos que os dos corredores de Roissy. Em seu pequeno quarto, as cortinas de chintz cor-de-rosa e preto estavam fechadas, o fogo brilhava atrás da tela metálica da lareira e a cama encontrava-se arrumada e com as cobertas esticadas.
“Comprei uma camisola de náilon para você”, disse René, “pois não tinha uma assim”. Com efeito, uma camisola de náilon branca, plissada, justa e fina como as roupas das estatuetas egípcias, e quase transparente, estava estendida na beira da cama, no lado em que O costumava deitar-se. Amarrava-se à cintura com um cinto estreito sobre uma faixa de pespontos elásticos, e o jérsei de náilon era tão leve que o bico dos seios coloria-o de rosa. Com exceção das cortinas, do revestimento onde se apoiava a cabeceira da cama e de duas pequenas poltronas baixas cobertas do mesmo chintz, tudo o mais era branco neste quarto: as paredes, a colcha que cobria a cama de colunas em acaju e as peles de urso no chão. Foi sentada diante do fogo, com sua camisola branca, que O escutou seu amante. Disse-lhe primeiro que de agora em diante não deveria mais considerar-se livre, logo acrescentando que era livre entretanto para não mais amá-lo e abandoná-lo imediatamente. Mas, se o amava, então não era livre para nada. O escutava-o em silêncio, considerando-se feliz por ele querer provar a si mesmo, sem importar-se como, que ela lhe pertencia, e achando também que havia ingenuidade de sua parte, em não perceber que essa dependência ia além  de qualquer prova. Mas talvez o percebesse e só quisesse prová-lo por sentir prazer nisto... Enquanto ele falava, O olhava o fogo e não para ele, não ousando encontrar seu olhar. René andava de um lado para o outro. De repente disse-lhe para abrir os braços e afastar os joelhos enquanto o escutava, pois estava sentada com os joelhos unidos e os braços cruzados ao redor. Ela Então levantou a camisola e de joelhos, mas sentada sobre os calcanhares como fazem as carmelitas e as japonesas, esperou. Com os joelhos afastados, sentia entretanto um leve e agudo formigamento entre as coxas entreabertas, devido ao contato com a pele branca, de urso. Ele insistiu: não abrira suficientemente as pernas. A palavra “abre” e a expressão “abre as pernas” assumiam na boca de seu amante tanta perturbação e tanto poder, que O nunca as ouviu sem uma espécie de  prosternação interior, de submissão sagrada, como se um deus, e não ele, tivesse falado. Ficou pois imóvel, com as mãos repousando com as palmas para cima, dos lados dos joelhos, entre os quais o jérsei de sua camisola espalhada ao redor formava novas pregas. O que seu amante desejava dela era simples: que permanecesse constante e imediatamente acessível. Não lhe bastava apenas saber: era necessário que permanecesse assim, sem o menor obstáculo, e que primeiro seu modo de comportar-se e em seguida suas roupas fossem, aos seus olhos avisados, por assim dizer, o símbolo disso. Isso significava duas coisas, prosseguiu: a primeira, que ela já sabia e sobre a qual tinha sido recomendada na noite em que chegara ao castelo: os joelhos que nunca devia cruzar, os lábios que deviam permanecer entreabertos. Sem dúvida ela achava que isso não tinha importância (e O realmente pensava assim), mas perceberia, ao contrário, que para se conformar com esta disciplina necessitaria de um constante esforço de atenção; que no segredo compartilhado por ambos e talvez por alguns outros, e no meio de ocupações comuns, entre todos aqueles que não o compartilhavam, lembrar-lhe-ia a realidade de sua condição. Quanto às suas roupas, cabia-lhe dar um jeito para escolhê-las ou para inventá-las, de modo que não fosse mais necessário submetê-la a despir-se parcialmente, como tinha acontecido no carro que a conduzia a Roissy. Amanhã, deveria fazer uma triagem em seus vestidos, nos armários, em suas roupas de baixo e nas gavetas, para substituir absolutamente tudo o que encontrasse: ligas e calcinhas, assim como sutiãs semelhantes ao que teve que cortar as alças para tirar, combinações que lhe cobriam os seios, blusas e vestidos que não se abriam na frente e saias demasiado estreitas para serem levantadas com um único gesto. Que mandasse fazer outros sutiãs, outras blusas, outros vestidos. Deveria ir à costureira com os seios nus sob a blusa ou sob a malha? Sim, iria com os seios nus. Se alguém percebesse podia explicar como quisesse, ou não explicar, à vontade. Isso só concernia à ela própria. Agora, quanto a outras coisas que queria ensinar-lhe, desejava esperar alguns dias, e que, para ouvi-lo, ela estivesse vestida como deveria. Encontraria todo o dinheiro que lhe fosse necessário na gaveta de sua secretária. Quando acabou de falar, sem esboçar o menor gesto, O murmurou “eu o amo”. Foi ele quem pôs mais lenha no fogo e quem acendeu a lâmpada da cabeceira, de opalina rosa. Disse, então, a O para deitar-se e esperá-lo, pois viria dormir com ela. Quando voltou, O estendeu a mão para apagar a luz: foi a mão esquerda, e a última coisa que viu antes que a escuridão apagasse tudo, foi o brilho sombrio do seu anel de ferro. Estava deitada meio de lado; no mesmo instante, seu amante dizia seu nome em voz baixa e a atraía para ele, penetrando, com toda a sua mão, no fundo de seu ventre.
No dia seguinte, quando O tinha acabado de almoçar, sozinha e vestida com um roupão na sala de jantar verde _ René tinha saído cedo e só deveria voltar à noite para levá-la para jantar _ o telefone tocou. O aparelho ficava no quarto, sob a lâmpada da cabeceira da cama. O sentou-se no chão para atender. Era René, que queria saber se a mulher da limpeza já tinha partido. Sim, acabara de sair, depois de servir o almoço, e só voltaria no dia seguinte de manhã. “Já começou a triagem das suas roupas?”, ele perguntou. “Estava para começar”, respondeu O, “mas levantei muito tarde, tomei um banho, e só fiquei pronta ao meio-dia.” “Está vestida?”  “Não, estou de camisola e de roupão.” “Largue o telefone, tire seu roupão e sua camisola.” O obedeceu, tão emocionada que o aparelho caiu da cama, onde o tinha colocado, sobre o tapete branco, o que a fez pensar que a comunicação tinha se cortado. Não, não estava cortada. ”Está nua?”, continuou René. “Sim”, disse ela, “mas de onde você está me telefonando?”. René não respondeu à sua pergunta e continuou. ”Conservou o anel?”. Tinha-o conservado. Disse-lhe então para ficar como estava até que ele voltasse e, assim despida, preparar a mala com as roupas das quais deveria se livrar. Em seguida desligou. Já era mais de uma hora e o tempo estava bom. Um raio de sol iluminava, sobre o tapete, a camisola branca e o roupão de veludo côtelé verde-pálido como as cascas de amêndoas frescas, que, ao retirar, O tinha deixado cair. Recolheu as roupas para ir guardá-las num armário do banheiro. No caminho, um dos espelhos fixado sobre uma porta, que formava com um outro sobre a parede e com outra porta igualmente coberta com um espelho um grande espelho de três faces, bruscamente refletiu sua imagem: estava usando apenas seus chinelos de couro do mesmo verde que seu roupão _ só um pouco mais escuros do que os chinelos que usava em Roissy _ e seu anel. Não tinha mais o colar e os braceletes de couro, estava sozinha, só tendo a si mesma como espectadora. Nunca, entretanto, sentira-se mais totalmente entregue a uma vontade que não era a sua, mais totalmente escrava  e mais feliz por sê-lo. Quando se abaixava para abrir uma gaveta, viu que seus seios balançavam suavemente. Demorou cerca de duas horas para colocar sobre a cama as roupas que deveria arrumar na mala. Dispôs as calcinhas numa pequena pilha ao lado de uma das colunas da cama. O mesmo quanto aos sutiãs; não havia nenhum que servisse: todos se cruzavam nas costas e se fechavam do lado. Percebeu, no entanto, como poderia fazer executar o mesmo modelo, colocando o fecho na frente, entre os seios. Com as cinta-ligas, também não teve dificuldades, mas hesitou em dispensar a liga bordada de cetim cor-de-rosa que se amarrava nas costas e que lembrava tanto o espartilho que usara em Roissy. Deixou-a de lado sobre a cômoda. René decidiria. Também decidiria sobre as malhas que, todas, entravam pela cabeça e eram fechadas no pescoço, portanto, sem nenhuma abertura. Mas podiam ser levantadas desde a cintura, e desta forma libertar os seios. Todas as combinações, entretanto, amontoaram-se sobre a cama. Na gaveta da cômoda, ficou apenas uma anágua, de seda preta bordada com um folho plissado e pequenas valencianas, que servia de forro para uma saia de lã preta plissada, leve demais para não ficar transparente. Iria precisar de outras anáguas, claras e curtas. Percebeu também que precisaria renunciar a usar vestidos retos, ou então escolher modelos de vestidos abotoados de alto a baixo e, nesse caso, fazer um forro que se abrisse junto com o próprio vestido. Quanto às saias e aos vestidos, era fácil, mas quanto à roupa de baixo, que diria à costureira? Explicaria que queria um forro removível porque era friorenta. Era verdade que era friorenta, e repentinamente perguntou-se como iria suportar, tão mal protegida, o frio de inverno quando estivesse fora. Finalmente, tendo terminado e salvado de seu guarda-roupa apenas os vestidos que se abotoavam na frente, sua saia preta plissada, seus casacos, naturalmente, e o tailler com o qual tinha voltado de Roissy, foi preparar um chá. Na cozinha, aumentou o termostato do aquecimento. A mulher da limpeza não tinha enchido a cesta de lenhas para o fogo da sala e O sabia que seu amante gostaria de encontrá-la, à noite, na sala junto ao fogo. Encheu a cesta na caixa do corredor, trouxe-a para perto da lareira da sala, e acendeu o fogo. Assim, encolhida numa grande poltrona, com a bandeja de chá ao seu lado, esperou que ele entrasse, mas desta vez, como lhe tinha sido ordenado, esperou-o nua.
A primeira dificuldade que O encontrou foi no seu trabalho, mas dizer dificuldade é um certo exagero. Seria mais justo dizer que causou alguma surpresa. O trabalhava no setor de modas de uma agência fotográfica, o que significava que fotografava num estúdio onde deviam posar durante horas as moças mais estranhas e mais bonitas, escolhidas pelos costureiros para apresentarem seus modelos. Surpreenderam-se por O ter prolongado tanto suas férias, tendo se ausentado justamente no outono, época em que a atividade era maior, quando a moda nova estava para ser lançada. Mas isso ainda não era nada. Surpreenderam-se sobretudo por estar tão mudada. Podia-se senti-lo à primeira vista embora não se soubesse dizer exatamente em que, mas quanto mais se observava, mais evidente se tornava essa mudança. Mantinha-se mais ereta, seu olhar era mais claro, mas o que impressionava sobretudo era a perfeição de sua imobilidade e o comedimento dos seus gestos. Sempre se vestira sobriamente, como costumam fazer as moças que trabalham quando  seu trabalho se assemelha ao trabalho dos homens; mas, por mais prudente que fosse, justamente o fato de que as outras moças, que constituíam o próprio objeto do seu trabalho, tivessem, por ocupação e por vocação, as roupas e os ornamentos, permitiu que observassem rapidamente o que teria passado despercebido a olhos menos avisados. As malhas usadas sobre a pele, e que delineavam os seios tão suavemente - René finalmente tinha permitido as blusas de malha - as saias plissadas que rodopiavam com tanta facilidade, tomavam um pouco o jeito de um discreto uniforme, pela freqüência com que O as usava. “Você é muito jovem”, disse-lhe um dia uma manequim loura de olhos verdes, que tinha as maçãs do rosto altas das eslavas e a pele trigueira. “Mas não devia usar essas ligas”, continuou, “elas vão estragar suas pernas”. Pois O, sem prestar atenção, tinha se sentado à sua frente um pouco depressa e de lado sobre o braço de uma grande poltrona de couro, e sua saia tinha se levantado. A moça percebera a coxa nua brilhando sobre a meia enrolada e que terminava logo acima do joelho. O vira-a sorrir de um modo tão curioso que ficou pensando o que teria imaginado nesse momento ou, quem sabe, compreendido. Puxou as meias, uma de cada vez, para esticá-las mais, o que era mais difícil do que quando subiam até a metade das coxas esticadas pela liga e, para justificar-se, respondeu a Jacqueline: “É prático.” “Prático por quê? “, perguntou Jacqueline. “Não gosto das cintas-ligas”, respondeu O . mas Jacqueline não a escutava e observava o anel de ferro.
Em poucos dias O tirou uma cinqüenta fotos de Jacqueline. Não se pareciam com nenhuma das que tinha feito antes. Talvez nunca tivesse tido uma modelo como ela. Em todo caso, nunca soubera tirar de um rosto ou de um  corpo um significado tão comovente. No entanto, tratava-se apenas de tornar mais belas as sedas, as peles e as rendas, pela súbita beleza de fada surpreendida ao espelho que Jacqueline expressava, tanto sob a blusa mais simples, como sob o mais suntuoso vison. Tinha os cabelos curtos, espessos e louros, apenas ondeados, e à menor palavra inclinava um pouco a cabeça para o ombro esquerdo encostando o rosto na gola levantada da pele, se nesse momento estivesse usando alguma pele. O fotografou-a assim uma vez, sorridente e terna, com os cabelos ligeiramente levantados como por um pouco de vento, e com o rosto firme e suave apoiado sobre o vison azulado, cinza e doce como a cinza fresca de um fogo de lenha. Entreabria os lábios e semicerrava os olhos. Na água brilhante e gelada da foto, dir-se-ia uma afogada feliz, e pálida, tão pálida! O tinha feito tirar a prova no mais leve tom de cinza. Tirara outra foto de Jacqueline que a perturbava ainda mais: contra a luz, com os ombros nus, a cabeça pequena e delicada, assim como o rosto, totalmente envolvido por um veuzinho preto de malhas abertas, encimado por um penacho duplo absurdo, cujas pontas impalpáveis coroavam-na como uma fumaça. O vestido imenso, de uma seda vermelha, grossa e adamascada, como um vestido de noiva da Idade Média, cobria-a até os pés e abria-se nos quadris, apertando a cintura com uma armação modelando o busto. Era o que os costureiros costumam chamar de vestido de gala e que nunca ninguém usa. As sandálias, de saltos muito altos, também eram de seda vermelha. E durante todo o tempo em que Jacqueline esteve diante de O com este vestido, estas sandálias e este véu, que parecia a premonição de uma máscara, O completava e modificava consigo mesma o modelo: tão pouca coisa - a cintura mais apertada, os seios mais expostos - e era o mesmo vestido que Jeanne usava em Roissy, a mesma seda grossa, lisa, quebradiça, aquela seda que se levanta com as mãos à uma ordem...E agora Jacqueline levantava-a com as mãos para descer da plataforma onde estava posando há quinze minutos. Era o mesmo som leve, o mesmo estalido de folhas secas. Ninguém usa esses vestidos de gala? Ah! Sim! Jacqueline usava também, ajustado ao pescoço, um colar de ouro, assim como braceletes de ouro nos pulsos. O surpreendeu-se pensando que ficaria mais bela com o colar e os braceletes de couro. E desta vez, pela primeira vez, acompanhou Jacqueline até o grande camarim contíguo ao estúdio, onde as modelos se vestiam e se maquilavam e onde deixavam suas roupas e pinturas. Ficou de pé no batente da porta, com os olhos fixos no espelho da penteadeira diante da qual Jacqueline tinha se sentado sem tirar o vestido. O espelho era tão grande - cobria todo o fundo da parede, e a penteadeira era uma simples mesinha de vidro negro - que podia ver, ao mesmo tempo, Jacqueline, sua própria imagem e a imagem da moça encarregada de ajudar a vestir e a despir as manequins, que já retirava o penacho e o véu de tule. A própria Jacqueline abriu o colar, com os braços nus levantados como dois arcos; havia um pouco de suor brilhando nas axilas que estavam depiladas (por quê? Pensou O, que pena, era tão loura...) e O sentiu seu odor ocre e fino, um pouco vegetal, perguntando-se que perfume usaria Jacqueline - e que perfume lhe seria dado em Roissy. Em seguida, Jacqueline tirou os braceletes, colocando-os sobre a mesinha de vidro onde por um instante tiniram como correntes. Seus cabelos eram tão claros que sua pele chegava a ser mais escura do que os cabelos, lembrando a areia fina quando a maré acaba de se retirar. Na foto, a seda vermelha seria negra. Justo neste momento,  Jacqueline levantou os cílios espessos que maquilava a contragosto, e O encontrou no espelho seu olhar tão direto, tão imóvel, que, sem poder desviar o seu, sentiu que enrubescia levemente. Foi tudo. “Com licença”, disse Jacqueline, “tenho que tirar a roupa”. “Desculpe”, murmurou O; e fechou a porta. No dia seguinte levou para casa as provas das fotos tiradas na véspera, sem saber se desejava ou não mostrá-las a seu amante, com quem ia sair para jantar. Olhava-as enquanto se maquilava, à penteadeira de seu quarto, interrompendo-se para acompanhar com o dedo, sobre a foto, a linha de uma sobrancelha. Mas ao escutar o barulho da chave na fechadura da porta da entrada, guardou-as na gaveta.
O já se encontrava equipada a duas semanas, mas ainda não se acostumara com as novas roupas, quando uma noite, ao voltar do estúdio, encontrou um bilhete de seu amante, pedindo-lhe para estar pronta as oito horas, para ir jantar com ele e um de seus amigos. Mandaria um carro e o motorista subiria para chamá-la. O post-scriptum determinava que usasse um casaco de peles, que se vestisse inteiramente de negro (o inteiramente estava sublinhado) e que tivesse o cuidado de se maquilar e de perfumar-se como em Roissy. Eram seis horas; inteiramente de negro para jantar - no frio de meados de dezembro - significava usar meias de náilon pretas e sua saia plissada em leque, com uma malha grossa com lantejoulas, ou seu blusão de seda. Escolheu o blusão de seda, acolchoado com grandes pespontos, ajustado e abotoado do pescoço à cintura, como os estritos gibões usados pelos homens do século dezesseis; e se o busto se delineava tão bem, era porque havia um sutiã fixado no interior. Era forrado com o mesmo tecido, e suas abas recortadas terminavam nos quadris. Só o clareavam as grandes fivelas douradas, aparentes, como as que se vêem nos sapatos que as crianças usam na neve, que se abrem e se fecham com barulho, sobre grandes argolas achatadas. Nada mais pareceu mais estranho a O, depois de ter estendido suas roupas sobre a cama, e colocado ao pé da cama seus sapatos de gamo negro, com salto alto em agulha, do que ver-se livre e sozinha no seu banheiro, cuidadosamente ocupada depois do banho, em maquilar-se e perfumar-se como em Roissy. As pinturas que possuía não eram as mesmas que lá se usava. Encontrou, na gaveta de sua penteadeira, um ruge cremoso para o rosto - nunca o usava - com o qual sublinhou a auréola dos seios. Era um ruge que mal se via no momento em que era aplicado, mas que depois tornava-se mais escuro. Mas logo achou que tinha colocado demais, tirou um pouco com álcool - era difícil de tirar - e recomeçou: uma tonalidade rosa-escura adornou a ponta de seus seios. Tentou inutilmente maquilar os lábios escondidos sob os pêlos do ventre; o ruge aí não marcava. Encontrou, finalmente na mesma gaveta, um desses batons à prova de beijos, que não costumava usar porque era muito seco e marcava a boca por tempo demasiado. Este serviu. Arrumou por fim os cabelos, o rosto, e perfumou-se. René tinha lhe dado, num vaporizador que projetava em névoa espessa, um perfume cujo nome ignorava, mas que tinha cheiro de madeira seca e de plantas dos pântanos, acres e selvagens. A bruma derretia e corria sobre a pele e nos pêlos das axilas e do ventre, fixando-se em minúsculas gotinhas. O tinha aprendido em Roissy a lentidão: perfumou-se por três vezes, deixando, todas as vezes, o perfume secar sobre seu corpo. Vestiu primeiro as meias e os sapatos altos, depois o forro da saia e a saia e, finalmente, o blusão. Pôs suas luvas e pegou a bolsa. Na bolsa levava uma caixa de pó-de-arroz, seu batom, um pente, sua chave, mil francos. Com as mãos já enluvadas, retirou do armário uma pele, e olhou a hora na cabeceira da cama: faltava um quarto para as oito. Sentou-se de lado na beira da cama, com os olhos fixos na campainha, esperando, imóvel, que esta tocasse. Quando finalmente a escutou e levantou-se para partir, vislumbrou no espelho, antes de apagar a luz, seu olhar ousado, doce e dócil.
Ao empurrar a porta do pequeno restaurante italiano diante do qual o carro tinha parado, a primeira pessoa que viu, no bar, foi René, que, sorrindo com ternura, tomou sua mão, e voltando-se para um tipo atlético, de cabelos grisalhos, apresentou-lhe, em inglês, Sir Stephen H. Ofereceram a O um banquinho entre os dois homens, e, quando ia sentar-se, René lhe disse a meia voz que tomasse cuidado para não amassar o vestido. Ajudou-a a puxar a saia para fora do banco e O sentiu na pele o couro frio e a borda guarnecida de metal no interior das coxas, pois só ousou sentar-se de lado, temendo ceder à tentação de cruzar os joelhos caso se sentasse completamente. Sua saia espalhava-se em volta do banco. Com o pé direito apoiava o salto numa das barras do banco e, com a ponta do outro, tocava o chão. O inglês, que se inclinara sem dizer nada, não a perdia de vista. O percebeu que olhava seus joelhos, suas mãos, e finalmente seus lábios, mas tão tranqüilamente, e com uma atenção tão precisa e tão segura de si mesma, que sentiu-se pesada e medida como o instrumento que bem sabia que era, e foi como forçada por seu olhar e por assim dizer contra a vontade que retirou suas luvas. Imaginou que faria algum comentário ao ver suas mãos nuas - porque eram mãos originais, que mais pareciam as mãos de um rapaz do que as de uma mulher, e porque usava no anular esquerdo o anel de ferro com a tríplice espiral de ouro. Mas ele não disse nada e apenas sorriu: tinha visto o anel. René bebia um Martini, Sir Stephen, uísque. Enquanto terminava seu uísque lentamente e esperava que René tivesse bebido seu segundo Martini e O o suco de laranja que René tinha lhe encomendado, disse-lhe que, se quisesse dar-lhe o prazer de concordar, poderiam jantar na sala do subsolo, menor e mais tranqüila do que aquela onde se encontrava o bar onde estavam. “É claro”, disse O, pegando, sobre o bar, a bolsa e as luvas que tinha colocado ali. Sir Stephen ofereceu-lhe a mão direita para ajudá-la a descer do banco, e O pôs sua mão sobre a dele. Então, dirigindo-lhe a palavra diretamente, observou que suas mãos eram feitas para usar os ferros, pois estes iam-lhe muito bem. Mas, como falava em inglês, havia um ligeiro equívoco nos termos e podia-se hesitar em compreender se se tratava apenas do metal, ou também, e sobretudo, das correntes. Na sala do subsolo, que era uma simples adega caiada, mas fresca e alegre, havia apenas quatro mesas, só uma no entanto ocupada por alguns convivas cujo jantar já chegava ao fim. Nas paredes, havia um mapa da Itália gastronômica e turística, em cores suaves como as do sorvete de baunilha, de framboesa ou de pistache, o que sugeriu a O pedir um sorvete com amêndoas picadas e nata no fim do jantar. Sentia-se leve e feliz. Por baixo da mesa, o joelho de René tocava o seu e, quando ele falava, sabia que falava por ela. E ele também olhava para seus lábios. No final, deram-lhe permissão para o sorvete, mas não para o café. Sir Stephen convidou O e René para irem tomar café em sua casa. Tinham jantado levemente e O observou que quase não tinham bebido, e que a ela deixaram beber menos ainda: apenas meia garrafa de Chianti para os três. Observou também que jantaram rapidamente: eram só nove horas. “Dispensei o motorista”, disse Sir Stephen “quer dirigir, René? O mais simples é irmos diretamente para a minha casa”. René tomou a direção. O sentou-se ao seu lado, Sir Stephen ao lado de O . O carro era um grande Buick e os três couberam muito bem no banco da frente.
Tendo passado Alma, o Cours-la-Reine tornava-se claro porque as árvores não tinham folhas, e a praça da Concórdia estava seca e cintilante sob o céu sombrio desses tempos em que a neve se acumula e não se decide a cair. O escutou o barulhinho e sentiu um ar quente que subia por suas pernas: Sir Stephen tinha ligado o aquecimento. René continuou acompanhando o Sena pela margem direita, depois virou em Pont-Royal para ganhar a margem esquerda. Entre as margens de pedra, a água também parecia imóvel como a pedra, e negra. O lembrou-se das hematitas que são negras. Quando tinha quinze anos, sua melhor amiga que tinha trinta e por quem estivera apaixonada usava um anel de hematita cravejado de pequenos diamantes. O gostaria de ter um colar dessas pedras negras, sem diamantes; um colar junto ao pescoço, talvez apertado no pescoço. Mas os colares que lhe davam agora - não, não lhe eram dados - tê-los-ia trocado pelo colar de hematitas, pelas hematitas do sonho? Reviu o quarto miserável para onde Marion a tinha levado, atrás da encruzilhada Turbigo, e como tinha desmanchado, ela própria, e não Marion, suas longas tranças de colegial, quando Marion tirou suas roupas e a deitou sobre a cama de ferro. Marion ficava bonita quando era acariciada, e é verdade que os olhos podem parecer estrelas; os seus pareciam vibrantes estrelas azuis. René parava o carro. O não reconheceu a pequena rua, uma das que uniam transversalmente a rua da Universidade à rua de Lille.
O apartamento de Sir Stephen situava-se no fundo de um pátio, na ala de um prédio antigo, e as peças estavam dispostas em fila. A que se encontrava no fim era a maior e a mais repousante, com seus móveis à inglesa, em acaju escuro e cobertos com sedas pálidas, em tons de amarelo e cinza. “Não vou lhe pedir para que cuide do fogo”, disse Sir Stephen a O; “mas este sofá é para você. Sente-se por favor, René vai fazer o café. Só quero lhe pedir que me escute”. O grande sofá em tons claros, adamascado, encontrava-se perpendicular à lareira, de frente para as janelas que davam para o jardim e de costas para as que davam para o pátio. O tirou sua pele e a colocou no encosto do sofá. Ao se virar percebeu que seu amante e seu anfitrião esperavam de pé que obedecesse ao convite de Sir Stephen. Colocou a bolsa ao lado da pele, desabotoou as luvas. Quando? Quando aprenderia, afinal - e chegaria a aprender? - a levantar suas saias para se sentar com um gesto tão furtivo que ninguém percebesse  e que ela mesma pudesse esquecer sua nudez, sua submissão? Em todo o caso, não seria enquanto René e este estrangeiro a estivesse olhando em silêncio, como faziam agora. Finalmente cedeu. Sir Stephen reavivou o fogo e René, passando rapidamente para trás do sofá, segurou-a pelo pescoço e pelos cabelos e, inclinando sua cabeça sobre o encosto, beijou sua boca, tão longa e profundamente que O perdia o fôlego e sentia o interior de seu ventre dissolver-se e arder. René só a deixou para lhe dizer que a amava e logo recomeçou. As mãos de O, abertas e caídas, abandonadas com as palmas para cima, repousavam sobre o vestido negro que se espalhava como uma corola ao seu redor. Sir Stephen tinha se aproximado e quando, finalmente, René a deixou, foi o  olhar  cinzento e direto do inglês que O encontrou. Por mais atordoada que estivesse, e ofegante de felicidade, não lhe foi difícil perceber que ele a admirava e a desejava. Quem teria resistido à sua boca úmida e entreaberta, aos seus lábios intumescidos, ao seu pescoço branco inclinado sobre a gola negra do blusão de pajem, aos seus olhos que não fugiam, e que tinham se tornado maiores e mais claros? Mas o único gesto que Sir Stephen se permitiu foi acariciar suavemente com o dedo suas sobrancelhas e seus lábios. Depois, sentou-se à sua frente, do outro lado da lareira e, tendo René também se sentado numa poltrona, falou: ”Acho que René nunca lhe falou sobre a sua família”, disse. “Talvez saiba, entretanto, que sua mãe antes de casar-se com seu pai tinha se casado com um inglês, que por sua vez tinha um filho de um primeiro casamento. Sou esse filho, e fui educado por ela até o dia em que abandonou meu pai. Não tenho portanto nenhum parentesco com René e, no entanto somos, de algum modo, irmãos. Que René a ama, eu sei. Teria percebido se não tivesse me dito e mesmo que nem se movesse: basta ver como olha para você. Também sei que é daquelas que estiveram em Roissy e imagino que irá voltar. Em princípio, o anel que usa me dá direito de dispor de você assim como todos os que conhecem seu sentido. Mas este é apenas um engajamento passageiro, o que esperamos de você é mais grave. Digo nós, pois, como vê, René se cala: quer que eu lhe fale por ele e por mim. Como irmãos, sou o mais velho, com dez anos mais do que ele. Entre nós há também uma liberdade tão antiga e tão absoluta que o que me pertence sempre lhe pertenceu, e o que lhe pertence, é meu. Quer consentir em participar disso? Se estou lhe pedindo, se peço o seu consentimento, é porque ele a engajará mais do que a sua submissão, que sei já ter sido adquirida. Antes de me responder, considere que sou apenas, e que só posso ser, uma outra forma de seu amante; e que sempre terá apenas um senhor: mais temível, acredito, que os homens a quem foi entregue em Roissy, porque estarei aí todos os dias, e além disso porque aprecio hábitos e rituais (and besides, I am fond habits and rites...).” A voz calma e pausada de Sir Stephen elevava-se num silêncio absoluto; as próprias chamas, na lareira, iluminavam sem fazer ruído. O estava fixada no sofá como uma borboleta presa por um alfinete, um longo alfinete feito de palavras e olhares que atravessava seu corpo pelo meio e pregava suas nádegas nuas e imóveis na seda morna. Não sabia onde se encontravam seus seios, sua nuca e suas mãos. Mas que os hábitos e rituais de que lhe falavam tivessem por objetivo a posse, entre outras partes de seu corpo, das suas longas coxas escondidas sob a saia negra, antecipadamente entreabertas, não duvidava. Os dois homens estavam à sua frente. René fumava, mas acendera uma dessas lâmpadas de capuz negro que devoram a fumaça, e o ar, já purificado pelo fogo da lareira, tinha o cheiro fresco da noite. ”Vai me responder, ou quer saber mais?”, disse ainda Sir Stephen.  “Se aceitar”, disse René, “eu mesmo lhe explicarei as preferências de Sir Stephen”. “As exigências”, corrigiu Sir Stephen. O mais difícil, pensava O, não era aceitar, e percebia que tanto um como o outro, como ela própria, não consideravam, nem por um segundo, que pudesse recusar. O mais difícil era simplesmente falar. Seus lábios queimavam e sua boca estava seca; faltava-lhe a saliva, uma angústia de medo e de desejo cerrava sua garganta, e suas mãos, finalmente reencontradas, estavam frias e úmidas. Se pudesse pelo menos fechar os olhos... Mas não. Dois olhares perseguiam o seu, aos quais não podia - nem queria - escapar. Atraíam-na para o que pensava ter deixado por muito tempo, talvez para sempre: Roissy. Pois, desde a sua volta, René só a tinha possuído com carícias, e o símbolo de que pertencia a todos os que conhecessem o segredo de seu anel tinha sido sem conseqüências; ou não tinha encontrado ninguém que o conhecesse, ou os que o compreenderam tinham se calado - a única pessoa de quem desconfiava era Jacqueline (e se Jacqueline tivesse estado em Roissy por que não usava, ela também, o anel? Além disso, que direito a participação nesse segredo dava a Jacqueline sobre ela, e dar-lhe-ia algum direito?). Para falar, era necessário mexer-se? Mas não conseguia se mexer por sua própria vontade - uma ordem tê-la-ia feito levantar-se no mesmo instante, mas desta vez o que queriam dela não era que obedecesse a uma ordem, mas que viesse adiante das ordens, que se considerasse a si própria uma escrava e que se entregasse como tal. Era a isto que chamavam seu consentimento. Lembrou-se de que nunca tinha dito a René outra coisa que não fosse “eu o amo” e “eu sou sua”. Parecia que hoje queriam que falasse, e que aceitasse com detalhes e com precisão o que só o seu silêncio até agora aceitara. Finalmente endireitou-se, e como se o que tivesse para dizer a sufocasse, desabotoou as primeiras fivelas da sua túnica até o sulco dos seios. Em seguida pôs-se totalmente de pé. Seus joelhos e suas mãos tremiam. “Eu lhe pertenço”, disse finalmente para René, “serei o que quiser que eu seja” “Não”, corrigiu ele; “nos pertence; repete depois de mim: eu lhes pertenço, serei o que quiserem que eu seja”. Os olhos cinzentos e duros de Sir Stephen não a deixavam, nem os de René, onde se perdia, enquanto repetia lentamente depois dele as frases que lhe ditava, mas transpondo-as para a primeira pessoa, como num exercício de gramática. “Você reconhece que eu e Sir Stephen temos o direito...”, dizia René, e O retomava tão claramente quanto podia: “Eu reconheço que você e Sir Stephen têm o direito...” “O direito de disporem de seu corpo à vontade, em qualquer lugar e de qualquer forma que nos agrade, o direito de mantê-la acorrentada, o direito de chicoteá-la como a uma escrava ou como a uma condenada, pelo menor erro ou por mero prazer, o direito de não considerar suas súplicas ou seus gritos, se a fizermos gritar. Acho que é isso que Sir Stephen queria saber de mim e de você mesma”, disse René, “e quer também que eu lhe forneça os detalhes de suas exigência”. O escutava seu amante, e as palavras que dissera em Roissy voltavam à sua memória. Eram quase as mesmas palavras, mas naquela ocasião escutara-as em seus braços, protegida por uma inverosimilhança que parecia um sonho e pelo sentimento de que existia numa outra vida, e de que talvez nem sequer existia. Sonho ou pesadelo, cenários de prisão, vestidos de gala, personagens mascarados, tudo a afastava de sua própria vida, até mesmo a incerteza da duração. Sentia-se, lá, como quem se encontra dentro da noite, no coração de um sonho que se reconhece e que recomeça; certa de que este sonho existe, de que vai chegar ao fim, desejando que chegue ao fim por medo de não poder agüentá-lo e ao mesmo tempo que continue para conhecer seu desenlace. Pois bem, o desenlace estava aí, quando não mais o esperava, e da forma como menos o esperava (considerando, como pensava agora, que fosse realmente o desenlace, e que atrás desse não se escondesse um outro desenlace, e que talvez um outro ainda existisse atrás do seguinte).Este, que sua lembrança trazia para o presente, consistia em que o que tinha realidade apenas num círculo fechado, num universo fechado, ia, repentinamente, contaminar todos os acasos e todos os hábitos de sua vida cotidiana, e sobre ela, e nela, não mais contentar-se com signos - os quadris nus, os corpetes que se desamarram, o anel de ferro - mas exigir uma realização. Era exato que René nunca tinha lhe batido e a única diferença entre a época em que o conhecera antes de tê-la levado para Roissy e o tempo decorrido desde que voltara era que agora usava tanto seus quadris e sua boca como antigamente usava seu ventre (e continuava a fazê-lo). Nunca soube se em Roissy os golpes de chicote que tinha recebido tão regularmente haviam sido dados por ele, mesmo que uma única vez (quando podia existir a questão, quando ela própria ou aqueles com quem estava usavam máscaras), mas não acreditava. Sem dúvida, o prazer que sentia no espetáculo do seu corpo amarrado e possuído, debatendo-se em vão, e de seus gritos era tão forte que não suportava a idéia de se distrair e ajudava com suas próprias mãos. Pode-se dizer que o confessava pois agora dizia, de um modo tão doce e meigo, sem se mexer na poltrona profunda onde se estendia, como se sentia feliz ao vê-la colocar-se por si mesma à disposição das ordens e dos desejos de Sir Stephen. Quando Sir Stephen quisesse que ela passasse a noite em sua casa, ou apenas uma hora, ou que a acompanhasse fora de Paris, ou mesmo em Paris, a algum restaurante ou espetáculo, telefonaria ou lhe mandaria seu carro - a menos que o próprio René viesse buscá-la. Hoje, agora, era sua vez de falar. Consentia? Mas não podia falar. Esta vontade que de repente via-se solicitada a expressar era a vontade de fazer a entrega de si mesma, de dizer sim antecipadamente a tudo aquilo a que certamente queria dizer sim, mas a que seu corpo dizia não, pelo menos quando se tratava do chicote. Pois quanto ao resto, se quisesse ser honesta consigo mesma, sentia-se perturbada demais pelo desejo que lia nos olhos de Sir Stephen como para se enganar, e por mais trêmula que estivesse e talvez justamente porque estivesse tremendo, sabia que esperava, com mais impaciência do que ele, o momento em que a tocaria com suas mãos ou, talvez, com seus lábios. Sem dúvida dependia dela aproximar este momento. Por maior que fosse a coragem ou o desejo violento que sentia quando finalmente ia responder, sentiu-se enfraquecer e caiu no chão com o vestido espalhado à sua volta. Sir Stephen observou, à meia voz no silêncio, que o medo também lhe caia bem. Não se dirigia a ela, mas a René. O teve a impressão de que ele se continha para não avançar sobre ela e lastimou que se contivesse. Entretanto não o olhava, fixando os olhos em René, com pavor de que adivinhasse, nos seus, o que consideraria talvez uma traição. E, no entanto, não havia traição, pois, se pusesse na balança o desejo que tinha de pertencer a Sir Stephen e o de pertencer a René, não teria hesitado nem por um segundo. Na verdade só se deixava levar por este desejo porque René tinha lhe permitido e até certo ponto deixado entender que o ordenava. Permanecia, entretanto, esta dúvida: a de saber se não se irritaria ao ver-se tão rapidamente e tão bem obedecido. O mais ínfimo sinal de sua parte bastaria para apagar imediatamente este desejo. Mas não fez nenhum sinal, contentando-se em pedir-lhe, pela terceira vez, uma resposta. O então balbuciou: “Consinto com tudo o que quiserem”. Abaixou os olhos para suas mãos que, separadas entre seus joelhos, esperavam, depois confessou num murmúrio: “Gostaria de saber se vou ser chicoteada...” Durante um momento tão longo que teve tempo para arrepender-se vinte vezes de ter feito a pergunta, ninguém respondeu. Depois a voz de Sir Stephen disse lentamente: “Às vezes”. Em seguida O escutou um fósforo que se acendia e o barulho de copos sendo retirados: sem dúvida um dos dois homens tomava mais uísque. René deixava O sem socorro. René se calava. “Mesmo se consentir agora”, disse O, “mesmo se prometer agora, não poderei suportá-lo”. “Só pedimos para se sujeitar, e se gritar ou se queixar, para consentir, agora, que seja em vão”, retomou Sir Stephen. “Oh! por piedade”, disse O, “ainda não”, pois Sir Stephen se levantava. René também se levantava e, inclinado-se para ela, segurava-a pelos ombros. “Responda logo, aceita?” Disse finalmente que aceitava. Ele então levantou-a suavemente e, tendo se sentado no sofá, fez com que ficasse de joelhos diante dele. Com os braços estendidos e os olhos fechados, ela apoiou a cabeça e o busto no sofá. Então uma imagem que tinha visto há alguns anos a atravessou. Era uma curiosa estampa que representava uma mulher de joelhos como ela, diante de uma poltrona, numa sala ladrilhada. Uma criança e um cachorro brincavam a um canto, as saias da mulher estavam levantadas, e um homem de pé, bem perto, levantava sobre ela um punhado de varas. Todos usavam roupas do fim do século XVI e a estampa tinha o título que lhe parecera revoltante: a Correção Familiar. René com uma das mãos segurou seus pulsos enquanto com a outra levantou seu vestido, tão alto que sentiu a gaze plissada roçar seu rosto. Acariciava suas nádegas e fazia Sir Stephen observar as covinhas que as afundavam, e a suavidade do sulco entre as coxas. Depois, pressionando sua cintura com a mesma mão para salientar as nádegas, ordenou-lhe que abrisse mais os joelhos. Ela obedeceu sem dizer nada. As honras que René fazia de seu corpo, as respostas de Sir Stephen, a brutalidade dos termos que os dois homens empregavam mergulharam-na num estado de vergonha tão violento e tão inesperado que o desejo que tinha de pertencer a Sir Stephen se desvaneceu e ela pôs-se a esperar o chicote como uma libertação, a dor e os gritos como uma justificativa. Mas as mãos de Sir Stephen abriram o caminho de seu ventre, forçaram o sulco entre suas nádegas, deixaram-na e voltaram, acariciando-a até fazerem-na gemer, humilhada por estar gemendo, derrotada. “Deixo-a para Sir Stephen”, disse então René. “Fique como está, ele a dispensará quando quiser”. Quantas vezes em Roissy, tinha ficado assim de joelhos, oferecida a qualquer um ? Mas lá, sempre amarrada pelos braceletes que uniam suas mãos, era a feliz prisioneira a quem tudo era imposto, a quem nada era perguntado. Aqui, era a sua própria vontade que ficava seminua, enquanto um só gesto, o mesmo que bastaria para pô-la novamente de pé, bastaria também para cobri-la. Sua promessa a prendia tanto quanto os braceletes de couro e as correntes. Mas seria apenas sua promessa? E por mais humilhada que estivesse, ou justamente porque estava humilhada, não haveria também a doçura de ter valor justamente por sua própria humilhação, pela sua docilidade em curvar-se, por sua obediência em abrir-se? Com a saída de René e Sir Stephen tendo-o acompanhado até a porta, O esperou, sozinha, sem se mexer, sentindo-se na solidão, mais exposta, e na espera, mais prostituída do que tinha se sentido quando estavam com ela. A seda cinza e amarela do sofá era lisa sob a sua saia, através do náilon de suas meias sentia sob os joelhos o tapete de lã alta, ao longo da coxa esquerda, o calor da lareira - onde Sir Stephen tinha acrescentado três achas que ardiam com muito barulho. Um relógio antigo, sobre uma cômoda, tinha um tiquetaque tão leve que só se podia perceber quando tudo se calava em volta. O escutou-o atentamente e sentiu como era absurdo neste salão civilizado e discreto ficar na postura em que estava. Através das persianas fechadas ouvia-se o roncar sonolento de Paris depois da meia-noite. Amanhã de manhã, durante o dia, reconheceria, na almofada do sofá, o lugar em que tinha apoiado a cabeça? Voltaria algum dia a este mesmo salão, para ser tratada do mesmo modo? Sir Stephen estava demorando e O, que tinha esperado com tanta indiferença o desejo dos desconhecidos de Roissy, sentia a garganta apertada com a idéia de que em um minuto, em dez minutos, novamente ele poria suas mãos sobre ela. Mas não aconteceu exatamente como previra. Ouviu quando abria a porta e atravessava a sala. Ficou por um tempo de pé, de costas para o fogo, observando O; depois, numa voz muito baixa, disse-lhe para se levantar e sentar-se novamente. Surpresa e quase constrangida, obedeceu. Ele lhe trouxe delicadamente um copo de uísque e um cigarro, que ela recusou. Viu então que ele vestia um roupão muito sóbrio, em popeline cinza - do mesmo cinza de seus cabelos. Suas mãos eram longas e secas, e as unhas planas, cortadas curtas, muito brancas. Nesse momento, Sir Stephen surpreendeu o olhar de O, que corou: eram bem estas mesmas mãos, duras e insistentes, que tinham se apoderado do seu corpo e que agora ela temia e esperava. Mas ele não se aproximava. “Gostaria que ficasse nua”, disse. “Mas antes desabotoe só o casaco, sem se levantar”. O desabotoou as grandes fivelas douradas e fez cair de seus ombros o agasalho negro que colocou na outra ponta do sofá, onde já se encontravam a sua pele, suas luvas e sua bolsa. “Acaricie um pouco o bico dos seios”, disse então Sir Stephen, acrescentando: “Vai precisar uma maquilagem mais escura, esta é muito clara”. Perplexa, O roçou o bico dos seios com a ponta dos dedos e ao sentir que endureceram e se levantaram, escondeu-os com as palmas: “Ah! Não”, disse Sir Stephen; e retirou suas mãos, inclinando-a para trás, sobre o sofá; seus seios eram pesados para o busto delicado e afastaram-se levemente para as axilas. Tinha a nuca apoiada no encosto, as mãos dos lados dos quadris. Por que Sir Stephen não  aproximava sua boca, por que não estendia a mãos para os bicos que desejou ver levantados e que ela sentia tremerem por mais imóvel que ficasse, só com o movimento da respiração? Mas ele tinha se aproximado e sentado meio de lado no braço do sofá, não a tocava. Fumava, e um movimento de sua mão, que O nunca soube se foi ou não voluntário, fez voar um pouco quase quente entre seus seios. O teve o sentimento de que ele queria insultá-la, com seu desdém, com seu silêncio, com o desprendimento que havia na sua atenção. No entanto, há pouco desejava-a, e mesmo agora ainda a desejava; podia perceber isso sob o tecido leve de seu roupão. Por que não a possuía nem que fosse para feri-la? O detestou-se por seu próprio desejo, e detestou Sir Stephen pelo domínio que tinha sobre si mesmo. Queria que ele a amasse, esta é a verdade: que ficasse impaciente para tocar seus lábios e penetrar seu corpo, que a destruísse se fosse necessário, mas que não pudesse, diante dela, guardar a calma e dominar seu prazer. Era-lhe indiferente, em Roissy, que aqueles que se serviam dela tivessem qualquer sentimento que fosse; eram apenas instrumentos através dos quais seu amante tinha prazer com ela, pelos quais ela se tornava o que ele quisesse, polida, lisa e doce como uma pedra. Todas as mãos eram as suas mãos, todas as ordens, as suas ordens. Aqui não. René tinha-a entregado a Sir Stephen, mas via-se bem que não era porque quisesse obter mais dela, nem pela alegria de entregá-la, mas para compartilhar o que mais amava, agora, com Sir Stephen, como sem dúvida, antigamente, quando eram mais jovens, tinham compartilhado uma viagem, um barco ou um cavalo. Era com relação a Sir Stephen que tinha sentido compartilhar, muito mais do que com relação a ela. O que cada um procuraria nela, seria a marca do outro, o traço da passagem do outro. Um momento antes, quando a mantinha de joelhos e seminua, apoiada nele, enquanto Sir Stephen com as duas mãos abria sua coxas, René tinha explicado a Sir Stephen por que o acesso às nádegas de O era tão fácil e por que tinha ficado tão contente por terem-na preparado desta maneira: era porque se lembrara de que seria agradável para Sir Stephen ter constantemente à sua disposição o caminho que mais lhe agradava. Chegou a acrescentar que, se quisesse, deixar-lhe-ia esse caminho para seu uso exclusivo. “Ah! Com muito gosto”, dissera Sir Stephen, observando entretanto que apesar de tudo ainda corria o risco de rasgar O . “O lhe pertence”, respondera René; e inclinando-se para ela tinha lhe beijado as mãos. Só a idéia de que René podia assim considerar a possibilidade de se privar de alguma parte sua, deixara O transtornada. Viu nisto o sinal de que seu amante importava-se mais com Sir Stephen do que com ela. E percebeu também que, embora René tantas vezes tivesse repetido que  amava nela o objeto em que a tinha transformado, sua total disponibilidade e a liberdade que sentia em relação a ela - como se possui um móvel com o qual se tem mais prazer dando-o  do que guardando-o para si - nunca tinha acreditado totalmente nisso. Via ainda outro sinal do que não podia ser outra coisa que uma deferência para com Sir Stephen no fato de que René, que amava tão profundamente vê-la sob os corpos ou os golpes de outros, que olhava com uma ternura tão constante, com um reconhecimento tão incansável sua boca abrir-se para gemer ou gritar, seus olhos fecharem-se sobre as lágrimas, tinha-a entretanto deixado, depois de assegurar-se ao expô-la, abrindo-a como se abre a boca de um cavalo para mostrar que é bastante jovem, que Sir Stephen achava-a suficientemente bela, ou, a rigor, suficientemente cômoda para ele, e que quisesse aceitá-la. No entanto,  este comportamento, ultrajante talvez, não mudava nada no amor de O por René. Sentia-se feliz por contar para ele, o suficiente para que sentisse prazer em ultrajá-la, como os crentes agradecem a Deus por humilhá-los. Mas em Sir Stephen adivinhava uma vontade firme e gélida que o desejo não dobraria, e diante da qual até agora, por mais comovente e submissa que fosse, não significava absolutamente nada. Não fosse assim por que teria sentido tanto medo?
O chicote no cinto dos criados de Roissy, as correntes que quase sempre carregava, tinham-lhe parecido menos assustadores do que a tranqüilidade com que Sir Stephen olhava seus seios sem tocá-los. Sabia como pareciam frágeis, assim pesados, lisos e inchados nos ombros pequenos e no busto delicado. Não conseguia parar de tremer, seria necessário parar de respirar. Esperar que esta fragilidade desarmasse Sir Stephen era inútil, e sabia muito bem que era justamente o contrário que acontecia: sua doçura assim oferecida atraía tanto os ferimentos quantos as carícias, tanto as unhas quanto os lábios. Teve um momento de ilusão: a mão direita de Sir Stephen, que segurava o cigarro, roçou com a ponta do dedo médio o bico de um seio, que obedeceu e tornou-se ainda mais duro. Que representava para Sir Stephen apenas uma espécie de jogo, uma verificação, como se verifica a excelência e o bom funcionamento de um mecanismo, O não tinha dúvidas. Sem tirar o braço de sua poltrona, Sir Stephen disse-lhe então para tirar a roupa. Nas mãos úmidas de O os colchetes escorregavam e teve que recomeçar duas vezes a desabotoar, sob a saia, a anágua de seda preta. Quando, enfim, ficou totalmente nua, só com as sandálias de verniz e as meias de náilon pretas enroladas acima dos joelhos sublinhando a delicadeza de suas pernas e a brancura de suas coxas, Sir Stephen, que também se levantara, segurou-a com uma das mãos dentro de seu ventre e empurrou-a para o sofá. Fez com que ficasse de joelhos com as costas encostadas no sofá e mandou que abrisse um pouco mais as coxas para apoiar-se mais perto dos ombros do que da cintura. As mãos de O repousavam junto aos tornozelos e desse modo seu ventre ficava entreaberto, e sobre os seios, oferecidos, seu pescoço inclinava-se para trás. Não ousava olhar Sir Stephen no rosto, mas via suas mãos que desamarravam o cinto do roupão. Quando foi para cima dela, sempre ajoelhada, segurando-a pela nuca, penetrou em sua boca. Não era a carícia de seus lábio que procurava, mas o fundo da sua garganta. Penetrou-a durante muito tempo; O sentia inchar-se e endurecer nela a mordaça de carne que a sufocava e cujo choque lento e repetido arrancava-lhe lágrimas. Para melhor penetrá-la, Sir Stephen tinha acabado de se pôr de joelhos sobre o sofá, de ambos os lados do seu rosto, e por instantes suas nádegas repousavam no peito de O, que sentia queimar seu ventre, inútil e desprezado. Por mais tempo que assim tivesse se deleitado, não acabou entretanto seu prazer, mas retirou-se em silêncio, ficando de pé sem fechar o roupão. “Você é fácil, O”, disse-lhe. “Ama René, mas é fácil. René percebe que você deseja todos os homens que a querem e que, levando-a para Roissy e entregando-a a outros, dá-lhe tantos álibis quanto a sua
própria facilidade?” “Amo René”, respondeu O . “Ama René, mas sente desejo por mim, entre outros”, continuou Sir Stephen. Sim, tinha desejo por ele, mas e se René, ao saber disso, mudasse? Podia apenas calar-se e abaixar os olhos, pois seu olhar nos olhos de Sir Stephen já teria sido uma confissão. Sir Stephen inclinou-se, então, para ela e, segurando-a pelos ombros, puxou-a para o tapete. Deu por si de costas, com as pernas levantadas e dobradas sobre o corpo. Sir Stephen, que tinha se sentado no sofá no mesmo lugar em que um momento antes estivera apoiada, segurou seu joelho direito e puxou-o para si. Como se encontrasse na frente da chaminé, à luz da lareira, bem próxima, iluminava violentamente o duplo sulco totalmente aberto de seu ventre e das suas nádegas. Sem largá-la, Sir Stephen ordenou-lhe bruscamente que se acariciasse, mas sem fechar as pernas. Perturbada, O estendeu docilmente sua mão direita sob o ventre, encontrando com os dedos, já liberada dos pêlos que a protegiam, já ardente, a aresta de carne onde se reuniam os frágeis lábios do seu ventre. Mas sua mão caiu, e balbuciou: “Não posso”. E, com efeito, não podia. Nunca tinha se acariciado, a não ser furtivamente no calor e na obscuridade de sua cama quando dormia sozinha, sem nunca entretanto buscar o prazer até o fim. Mas às vezes encontrava-o mais tarde em sonhos, e despertava decepcionada de que tivesse sido tão forte e tão fugaz. O olhar de Sir Stephen insistia. Não pôde suportá-lo e, repetindo “não posso”, fechou os olhos. O que revia, de que não conseguia fugir, e que lhe dava a mesma vertigem de repulsa que todas as vezes em que o testemunhara, quando tinha quinze anos, era Marion, com uma perna sobre o braço da poltrona e a cabeça meio pendente sobre o outro  braço, acariciando-se e gemendo na sua frente. Marion contara-lhe que um dia tinha se acariciado assim no escritório pensando estar sozinha, e que o chefe de seu serviço tinha entrado de imprevisto e a tinha surpreendido. O lembrava-se do escritório de Marion, um ambiente nu, de paredes em tom verde-pálido, que recebia a luz do dia vinda do norte, através dos vidros empoeirados. Só havia aí uma única poltrona destinada aos visitantes e que ficava na frente da mesa. “Você fugiu?”, tinha-lhe perguntado O . “Não”, respondera Marion, “ele me pediu para recomeçar, mas fechou a porta a chave, fez-me tirar a calcinha e empurrou a poltrona para perto da janela.” O tinha se sentido invadida de admiração pelo que considerava ser coragem de Marion, e ao mesmo tempo de horror, recusando-se ferozmente a acariciar-se diante de Marion e jurado que nunca, nunca se acariciaria na frente de ninguém. Marion, rindo, dissera: “Você vai ver quando seu amante lhe pedir”. René nunca tinha lhe pedido. Teria obedecido? Ah! Certamente, mas com que terror de ver surgir nos olhos de René a mesma repulsa que ela própria sentira diante de Marion! O que era absurdo; e que fosse Sir Stephen era mais absurdo ainda. Que lhe importava a repulsa de Sir Stephen? Mas não, não podia. Pela terceira vez murmurou: “Não posso”. Por mais baixo que tivesse falado, ele a escutou e, deixando-a, levantou-se, fechou seu roupão e ordenou a O que se levantasse. “É esta a sua obediência?”, disse. Depois, com a mão esquerda segurou seus pulsos e com a direita esbofeteou-a com toda a força. Ela cambaleou e teria caído se ele não a tivesse segurado. “fique de joelhos e me escute”, disse, “temo que René a tenha educado muito mal”. “Sempre obedeço René”, balbuciou. “Você confunde amor e obediência. Vai me obedecer sem me amar e sem que eu a ame”. O sentiu-se então tomada da mais estranha revolta, negando em silêncio no interior de si mesma as palavras que ouvia, negando suas promessas de submissão e de escravidão, negando seu próprio consentimento, seu desejo, sua nudez, seu suor, suas pernas trêmulas e as olheiras de seus olhos. Debateu-se, cerrando os dentes de raiva quando, fazendo-a curvar-se, ou melhor, prosternar-se, com os cotovelos no chão e a cabeça entre os braços e levantando-a pelos quadris, Sir Stephen forçou entre suas nádegas para rasgá-la como dissera a René que o faria. Da primeira vez ela não gritou. Recomeçando então mais brutalmente, ele fez com que gritasse. E todas as vezes em que ele se retirava e voltava, portanto, todas as vezes em que decidia, ela gritava. Gritava tanto de dor como de revolta, e ele não se enganava a este respeito. Ela também o sabia, e isso significava que de qualquer forma estava vencida e que ele estava contente por obrigá-la a gritar. Quando terminou, levantou-a, e começou a preparar-se para dispensá-la, enquanto observava que o que tinha ejaculado ao sair iria tingir-se aos poucos com o sangue do ferimento que lhe tinha feito, que este ferimento a queimaria enquanto não tivesse se acostumado e que continuaria a forçar a passagem. Certamente não iria privar-se deste uso dela que René lhe tinha reservado, portanto, não deveria esperar ser poupada. Lembrou-lhe que tinha consentido em ser escrava de René e sua, mas que lhe parecia improvável que soubesse com todo o conhecimento de causa em que tinha se engajado. Quando finalmente compreendesse, seria tarde demais para escapar. Enquanto o escutava, O pensava que talvez, por mais que demorasse para subjugá-la, fosse tarde demais também para que não se apaixonasse por sua obra e para que não a amasse um pouco, pois toda a sua resistência interior e a tímida recusa que ousava manifestar só tinham este motivo: queria existir para Sir Stephen, por pouco que fosse, como existia para René; que ele sentisse por ela mais do que desejo. Não que estivesse apaixonada, mas porque via claramente que René amava Sir Stephen com a paixão dos meninos pelos homens mais velhos e sentia-se pronta a sacrificar-se para satisfazer a Sir Stephen, na medida em que Sir Stephen o exigisse. Sabia, com a certeza da intuição, que René calcaria sua atitude sobre a de Sir Stephen e que se este lhe mostrasse desprezo, por maior que fosse o seu amor por ela, seria contaminado por este desprezo, como nunca fora nem sonhara ser pela atitude dos homens de Roissy. Isso porque, em Roissy, ele é que era o senhor, e a atitude de todos aqueles a quem a entregava, dependia da sua. Agora não era mais o senhor, pelo contrário. Sir Stephen era o senhor de René, sem que o próprio René o percebesse totalmente; ou seja, René admirava-o e gostaria de imitá-lo e de rivalizar com ele, e era por isso que compartilhavam tudo, e foi por isso que lhe dera O; desta vez era óbvio que tinha sido dada. René sem dúvida continuaria a amá-la, na medida em que Sir Stephen achasse que ela valia a pena, e que também a amasse. Até agora era óbvio que Sir Stephen seria o seu senhor, e, não importando o que René imaginasse, o seu único senhor, na relação precisa que liga o senhor ao escravo. Dele não esperava nenhuma piedade, mas não poderia esperar arrancar-lhe algum amor? Semi-estendido na grande poltrona que ocupara junto ao fogo antes da partida de René, ele a deixara nua, de pé a sua frente, dizendo-lhe para esperar as suas ordens. O esperou, calada. Depois, levantando-se, disse-lhe para segui-lo. Ainda nua, com suas sandálias de saltos altos e suas meias negras, acompanhou-o pela escada que vinha do térreo e entrou atrás dele, num quartinho tão pequeno que só tinha lugar para uma cama a um canto e para uma penteadeira e uma cadeira entre a cama e a janela; ligava-se a um quarto maior que era o de Sir Stephen e ambos abriam-se para o mesmo banheiro. O lavou-se e enxugou-se - a toalha ficou ligeiramente manchada de cor-de-rosa; tirou as sandálias e as meias e deitou-se nos lençóis frios. As cortinas da janela estavam abertas mas a noite estava escura. Antes de fechar a porta de comunicação, O já estando deitada, Sir Stephen aproximou-se e beijou a ponta de seus dedos, como tinha feito no bar quando O descera do banquinho, ao cumprimentá-la por seu anel de ferro. Assim, tinha-a penetrado com suas mãos e o seu sexo, tinha saqueado sua nádegas e sua boca, mas só consentia em colocar os lábios sobre a ponta de seus dedos. O chorou e só conseguiu dormir quando já amanhecia.
No dia seguinte, um pouco antes do meio-dia, o motorista de Sir Stephen conduziu O de volta à sua casa. Acordara às dez horas; uma velha mulata tinha lhe trazido uma xícara de café, preparado seu banho e trazido suas roupas, com exceção da pele, das luvas e da bolsa, que encontrou  no sofá da sala quando desceu. A sala estava vazia, com as persianas e as cortinas abertas. Podia-se ver, diante do sofá, um jardim estreito e verde como um aquário, plantado apenas com heras, azevinhos e arbustos. Quando vestia o casaco, a mulata veio dizer-lhe que Sir Stephen tinha saído e entregou-lhe uma carta só com sua inicial sobre o envelope. A folha branca continha duas linhas: “René telefonou para dizer que irá buscá-la no estúdio às seis horas”, assinadas com um S; e um post-scriptum: “A chibata é para sua próxima visita”. O olhou em volta: sobre a mesa, entre as duas poltronas onde Sir Stephen e René tinham se sentado na véspera, perto de um vaso de rosas amarelas, havia uma longa e fina chibata de couro. A criada esperava-a na porta. O pôs a carta em sua bolsa e saiu.
Então René tinha telefonado para Sir Stephen e não para ela. Chegando em casa, após ter tirado as roupas e almoçado, envolta em seu roupão, ainda teve tempo para refazer a maquilagem e o penteado, para vestir-se e ir para o estúdio, onde deveria estar às três horas. O telefone não tocou, René não a chamou. Por quê? O que Sir Stephen lhe teria dito? Como teriam falado dela? Lembrou-se das palavras com as quais tinham discutido tão naturalmente diante dela a comodidade de seu corpo com relação às exigências dos seus. Talvez fosse porque, em inglês, não estivesse acostumada com um vocabulário deste tipo, mas os únicos termos franceses que lhe pareciam equivalentes eram de uma baixeza absoluta. É verdade que tinha passado entre tantas mãos quanto as prostitutas dos bordéis; por que então deveriam tratá-la de outra maneira? “Eu o amo René, eu o amo”, repetia, chamando-o baixinho na solidão do seu quarto. “Eu o amo; faça de mim o que quiser, mas não me deixe, por Deus, não me deixe”.
Quem terá piedade daqueles que esperam? Pode-se reconhecê-los muito bem por sua doçura, por seu falsamente atento; atento, mas a uma outra coisa; não àquilo que olham, mas a uma ausência. Durante três horas, no estúdio, onde uma pequena manequim ruiva e roliça que não conhecia posava para chapéus, O foi essa ausente, atraída para o interior de si mesma, na pressa de que os minutos passassem, e na angústia. Sobre uma blusa e uma anágua de seda vermelha tinha vestido uma saia escocesa e um casaco curto de camurça. O vermelho de sua blusa, sob o casaco entreaberto, empalidecia ainda mais seu rosto já pálido, e a pequena manequim ruiva comentou que estava com um aspecto fatal. “Fatal para quem?”, pensou O . Fosse há dois anos, antes de ter encontrado René e de tê-lo amado, teria jurado: “fatal para Sir Stephen”, e ainda: “ele vai ver”. Mas seu amor por René e o amor de René por ela tinham-lhe tirado todas as suas armas; em vez de trazer-lhe novas provas de seu poder, havia-lhe tirado as que possuíra até então. Antigamente tinha sido indiferente e volúvel, divertindo-se em seduzir com uma palavra ou com um gesto os rapazes que se apaixonavam por ela, mas sem dar-lhes nada, entregando-se depois por capricho, uma vez, uma só, para recompensar, mas também para inflamar ainda mais e tornar ainda mais cruel uma paixão que não compartilhava. Estava segura de que a amavam. Um deles tinha tentado se matar. Ao voltar curado da clínica para onde tinha sido levado, ela fora à sua casa onde ficara nua e, deitada no seu divã, proibira-lhe de lhe tocá-la. Pálido de desejo e de dor, ele a tinha contemplado em silêncio durante duas horas, petrificado por sua palavra dada. Nunca mais quis vê-lo. Não que desconsiderasse o desejo que inspirava; compreendia-o ou pensava que compreendê-lo, tanto mais que experimentava um desejo análogo (pensava) por suas amigas ou por jovens mulheres desconhecidas. Algumas cediam, e levava-as então a hotéis excessivamente discretos, de corredores estreitos e divisórias transparentes a todos os barulhos; outras repeliam-na com horror. Mas o que imaginava ser desejo não era mais do que gosto pela conquista, nem seus modos de rapaz, nem o fato de que tinha tido alguns amantes - se podia chamá-los amantes -, nem sua dureza, nem mesmo sua coragem serviram para alguma coisa quando encontrou René. Em oito dias conheceu o medo, mas também a certeza; a angústia, mas também a felicidade. René atirou-se sobre ela como um pirata sobre uma presa e tornou-se cativa nas delícias, sentindo nos pulsos e nos tornozelos, em todos os membros e no mais secreto do seu corpo e do seu coração, laços mais invisíveis do que os mais finos cabelos, mais poderosos do que os cabos com que os liliputianos tinham amarrado Gulliver, laços que seu amante apertava ou afrouxava com um olhar. Não era mais livre? Ah! Graças a Deus, não era mais livre. Mas sentia-se leve como uma deusa sobre as nuvens, como um peixe na água, perdida de felicidade. Perdida, porque estes finos cabelos, estes cabos que René tinha todos em sua mão, eram a única rede de forças por onde, de agora em diante, passava por ela a corrente da vida. E isso era tão verdadeiro que, quando René afrouxava os laços - ou quando imaginava que o fazia -, quando parecia ausente, quando se afastava com indiferença, como lhe parecia, ou quando se demorava para vir vê-la ou para responder a suas cartas, e quando O pensava que ele não a amava mais, tudo nela se apagava e sufocava. A relva tornava-se negra, o dia não era mais dia nem a noite, noite, mas máquinas infernais que faziam alternar o claro e o escuro para o seu suplício. A água fresca dava-lhe náuseas. Sentia-se uma estátua de cinzas, acre, inútil e condenada como as estátuas de sal de Gomorra. Pois era culpada. Os que amam a Deus e a quem Deus abandona na noite escura são culpados, já que foram abandonados. Procuram seus erros na lembrança. Assim O procurava os seus. Só encontrava insignificantes complacências, mais na sua disposição do que em seus atos, pelos desejos que despertava em outros homens, aos quais só dava atenção na medida em que a felicidade que lhe dava a certeza de pertencer a René a preenchia, e em que o abandono em que se encontrava com relação a ele tornava-a invulnerável, irresponsável e todos os seus atos sem conseqüências - mas que atos? Pois só podia recriminar-se por seus pensamentos e por tentações fugidias. No entanto, não havia dúvidas de que era a culpada e de que, sem querer, René a punia por um erro que não conhecia ( pois tudo permanecia no seu íntimo) mas que Sir Stephen tinha imediatamente denunciado: sua facilidade. O ficava feliz quando René mandava chicoteá-la e a prostituía, em parte porque sua submissão apaixonada daria a seu amante a prova de que lhe pertencia, mas também porque a dor, a vergonha do chicote e o ultraje que lhe infligiam aqueles que a obrigavam ao prazer quando a possuíam, e os que se compraziam sem nenhuma consideração pelo seu prazer pareciam-lhe o próprio resgate do seu erro. Houve abraços que lhe pareceram imundos, mãos sobre seus seios que forma um intolerável insulto, bocas que aspiraram seus lábios e sua língua como moles e ignóbeis sanguessugas, línguas e sexos, animais viscosos, que se acariciaram em sua boca fechada, no sulco de seu ventre e de suas nádegas, que fechava com todas as forças, que a encheram de revolta por tanto tempo que o chicote não fora demais para reduzi-la; tinha acabado por se abrir, entretanto, com uma repulsa e um servilismo abomináveis. E se, apesar disso, Sir Stephen tivesse razão? E se o aviltamento lhe fosse agradável? Nesse caso, quanto maior fosse sua baixeza, mais misericordioso era René, ao consentir em fazer de O o instrumento de seu prazer. Quando criança tinha lido em letras vermelhas sobre a parede branca de um quarto onde morara durante dois meses no País de Gales um texto bíblico como os protestantes costumam inscrever em suas casas: “É terrível cair entre as mãos do Deus vivo.” Todas as vezes em que René  adiava o momento de vê-la, como tinha feito nesse dia, e que se demorava - pois seis horas já haviam passado e já eram seis e meia - O ficava assim, fechada na loucura e no desespero, inutilmente. René chegava, estava ai, não tinha mudado, amava-a, mas um conselho administrativo ou um trabalho suplementar tinha-o retido e não tinha tido tempo de avisá-la. O emergia subitamente de sua câmara de asfixia, mas cada um desses acessos de terror deixavam no fundo um surdo pressentimento, um aviso de infelicidade: pois René tanto podia ter se esquecido de avisar como um jogo de golfe ou um bridge podiam tê-lo retido, ou talvez algum outro rosto, pois amava O mas era livre, seguro quanto a ela e leve, muito leve. Não viria um dia de morte e de cinzas, um dia entre os dias, dar razão à loucura, quando a câmara de gás não mais se abriria? Ah! Que o milagre dure, que a graça não se desfaça... que René não me deixe! O não via e recusava-se a ver cada dia além do dia seguinte e do outro dia, cada semana, além da semana seguinte; e cada noite com René era uma noite para sempre.
Às sete horas, finalmente, René chegou, tão alegre ao encontrá-la que a beijou na frente do eletricista que consertava o holofote, na frente da pequena manequim ruiva que saía do quarto de maquilagem, na frente de Jacqueline, que ninguém esperava e que tinha entrado repentinamente. “ Que encantador”, disse Jacqueline a O; “estava passando e vinha pedir-lhe minhas últimas fotos, mas acho que este não é o momento e já estou de saída”. “Senhorita, eu lhe suplico”, gritou René sem largar O, que segurava pela cintura. “Senhorita, não vá!” O apresentou René a Jacqueline e Jacqueline a René. A manequim ruiva, despeitada, voltara a entrar em sua cabine, o eletricista fingia estar ocupado. O olhou para Jacqueline e sentiu que René seguiu seu olhar. Jacqueline vestia um traje de esqui como só usam as estrelas que não praticam esqui. Uma malha negra marcava seus seios pequenos e afastados; as calças justas, sua pernas longas, de filha das neves. Tudo nela lembrava a neve: o reflexo azulado de seu casaco de foca cinzenta era a neve à sombra; o reflexo orvalhado de seus cabelos e de seus cílios, a neve ao sol. Nos lábios usava um batom carmesim, e quando sorriu e levantou os olhos, O pensou que ninguém poderia resistir ao desejo de beber desta água verde e inconstante sob os cílios orvalhados, de arrancar sua malha para pousar as mãos sobre aqueles seios tão pequenos. Pronto: mal chegara René e, na certeza de sua presença, já reencontrava o gosto pelos outros, por si mesma e pelo mundo. Desceram os três. Na rua Royale, a neve que durante duas horas tinha caído em grandes flocos, turbilhonava agora como se fossem mosquitinhos brancos picando-os no rosto. O sal espalhado sobre a calçada rangia sob os saltos e descompunha a neve, e O sentiu o sopro gelado que desprendia subir por suas pernas e tocar suas coxas nuas.
O tinha uma idéia bem clara do que procurava nas mulheres. Não que quisesse dar a impressão de rivalizar com os homens, ou de compensar, por um comportamento masculino, alguma inferioridade feminina que absolutamente n ão experimentava. É verdade que há vinte anos tinha-se surpreendido ao fazer a corte à mais bonita de suas colegas, tirando a boina para dizer-lhe bom-dia, afastando-se para deixá-la passar e oferecendo sua mão para ajudá-la a descer de um táxi, assim como fazia questão de pagar quando tomavam chá em alguma confeitaria. Costumava beijar-lhe a mão e ocasionalmente a boca, se possível, na rua. Mas ostentava esses modos mais para fazer escândalo, mais por infantilidade do que por convicção. Entretanto, o gosto que tinha pela doçura dos lábios pintados, muito suaves, cedendo sob os seus, pelo brilho de esmalte ou de pérola dos olhos semicerrados na penumbra dos divãs às cinco horas da tarde, quando já foram fechadas as cortinas e já se acendeu a lâmpada sobre a chaminé, pelas vozes que dizem: “mais ah! Por favor, mais”, pelo tenaz odor marinho que lhe ficava nos dedos, este gosto era real e profundo. Igualmente viva era a alegria que lhe dava a caça. Não talvez pela caça em si mesma, por mais divertida e apaixonante que fosse, mas pela liberdade perfeita que experimentava então. Ela, e só ela, conduzia o jogo (o que nunca fazia com um homem, a não ser por subterfúgios). Era ela que tomava a iniciativa das palavras, dos encontros, dos beijos, a ponto de preferir que não a beijassem primeiro e de quase nunca tolerar, já que tinha amantes, que a moça a quem acariciava, a acariciasse por sua vez. Tanto tinha pressa em ter sua amiga nua sob seus olhos, sob suas mãos, quanto lhe parecia inútil tirar sua própria roupa. Freqüentemente procurava pretextos para evitá-lo, dizia que estava com frio, ou que se encontrava num mau dia. Havia, aliás, poucas mulheres em quem não encontrasse alguma beleza. Lembrava-se  de quando, tendo acabado de deixar o liceu, tentara seduzir uma menina feia e desagradável, sempre de mau humor, unicamente porque tinha uma floresta de cabelos louros que fazia sombra e luz em mechas mal cortadas sobre uma pele descorada, mas cujos fios eram suaves, cerrados, finos e totalmente foscos. Mas a menina a escorraçara e, se o prazer alguma vez iluminou aquele rosto ingrato, não foi para O . Pois O amava com paixão ver espalhar-se por estes rostos esse vapor que os torna tão lisos e tão jovens, de uma juventude fora do tempo, que não conduz à infância mas que incha os lábios, que aumenta os olhos como se estivessem pintados, que torna a íris cintilantes e claras. Havia mais admiração do que amor-próprio, pois não era a sua obra que a emocionava; tinha experimentado a mesma perturbação em Roissy diante do rosto transfigurado de uma moça possuída por um desconhecido. A nudez, a entrega dos corpos, transtornavam-na a ponto de parecer-lhe que recebia um presente do qual poderia oferecer o equivalente quando suas amigas consentiam em se mostrarem nuas em algum quarto fechado; pois a nudez das férias, ao sol e nas praias, deixava-a insensível - não porque fosse pública, mas porque, sendo pública e não sendo absoluta, tonava-se, de alguma forma protegida. A beleza das outras mulheres, que com constante generosidade inclinava-se a considerar superior à sua, tranqüilizava-a entretanto, porque via nestes espelhos pouco habituais como um reflexo da sua própria beleza. O poder que reconhecia em suas amigas sobre ela era-lhe ao mesmo tempo a garantia do seu próprio poder sobre os homens. Ficava feliz e achava natural que os homens insistissem em pedir-lhe o que pedia e não dava às mulheres, ou dava-lhes muito pouco. Era assim, ao mesmo tempo e constantemente, cúmplice de umas como dos outros, e ganhava nos dois times. Havia partidas difíceis. Que O estava apaixonada por Jacqueline, nem mais nem menos do que tinha estado por muitas outras e, admitindo-se que o termo apaixonada (era dizer muito) fosse conveniente, não havia dúvidas. Mas por que não mostrava nada do que sentia?
Quando os brotos surgiram nos álamos dos cais, quando o dia, mais lento para morrer, permitiu que os namorados se sentassem nos jardins à saída dos escritórios, achou que finalmente teria coragem para enfrentar Jacqueline. Durante o inverno, ela tinha-lhe parecido triunfante demais sob suas peles novas, colorida demais, intocável e inacessível. E sabendo disto. A primavera entregava-a aos tailleurs, aos saltos baixos e às blusas de malha. Parecia-se, enfim, com seus cabelos cortados retos, com as meninas insolentes do liceu, que, aos dezesseis anos, também menina de liceu, O segurava pelos punhos e levava em silêncio para algum vestiário vazio, empurrando-as sobre os casacos pendurados. Os casacos caíam dos cabides, O morria de rir. Usavam as blusas do uniforme, em algodão cru, com suas iniciais bordadas em linha de algodão vermelha sobre o peito. Com três anos de intervalo, a três quilômetros de distância, Jacqueline tinha, num outro liceu, usado as mesmas blusas. O soube disso por acaso, num dia em que Jacqueline posou para vestidos caseiros, suspirando porque, se tivessem sido roupas tão bonitas no liceu, teriam sido de algum modo mais felizes. Ou então se tivessem sabido usar, sem nada debaixo, as que lhe eram impostas. “Como sem nada?”, perguntou O “Sem vestido, é claro”, respondeu Jacqueline, fazendo O enrubescer. Não se acostumara ainda a ficar nua sob o vestido e qualquer palavra ambígua parecia-lhe uma alusão à sua condição. Em vão repetia para si mesma que sempre se está nua sob os vestidos. Não. Sentia-se nua como aquela italiana de Verona que ia oferecer-se ao chefe dos que cercavam sua cidade, para libertá-la. Parecia-lhe que também era para resgatar alguma coisa, como a italiana, mas o quê? Como Jacqueline era segura de si mesma, nada tinha a resgatar. Não precisava ser tranqüilizada, bastava-lhe um espelho. O olhava-a com humildade imaginando que, se não se quisesse passar vergonha, só se poderia oferecer-lhe flores de magnólia, porque suas pétalas  espessas e foscas transformam-se suavemente em bistre quando murcham; ou então camélias, porque um vislumbre rosa mistura-se às vezes à sua cera branca. À medida que o inverno se afastava, a tonalidade suave que dourava a pele de Jacqueline apagava-se com a lembrança da neve. Em breve, só as camélias lhe iriam bem. Mas O teve medo de que Jacqueline zombasse dela, com suas flores de melodrama. Um dia, trouxe-lhe um grande buquê de jacintos azuis, cujo odor é como o das tuberosas e faz virar a cabeça: oleoso, violento, tenaz, exatamente como as camélias deveriam ter e no entanto não têm. Jacqueline mergulhou na flores rijas e frescas seu nariz mongol, seus lábios, há quinze dias pintados de rosa e não mais de vermelho, e disse: ”São para mim? “, como costumam fazer as mulheres a quem todo o mundo dá presentes todo o tempo. Depois disse obrigada e em seguida perguntou se René vinha buscar O . “Vem, sim”, disse O . Vinha, repetia para si mesma, e era para ele que Jacqueline, falsamente imóvel, falsamente muda, levantaria por um segundo seus olhos de água fria que não olhavam de frente. A ela ninguém precisava ensinar nada: nem a se calar, nem a deixar suas mãos abertas junto ao corpo, nem a inclinar ligeiramente a cabeça. O morria de vontade de segurar, sobre a nuca de Jacqueline, um punhado daqueles cabelos tão claros, de inclinar totalmente aquela cabeça dócil e de acompanhar com o dedo a linha das sobrancelhas. Mas René também teria este desejo. Bem sabia porque, outrora intrépida, tinha-se tornado tão timorata; pois há dois meses desejava Jacqueline sem se permitir nenhuma palavra ou gesto que o confessasse e só encontrava débeis motivos para explicar sua reserva. Não era verdade que Jacqueline fosse intocável. O obstáculo não se encontrava em Jacqueline, mas no próprio coração de O, um obstáculo como nunca antes tinha encontrado. O fato é que René a deixava livre e que detestava sua liberdade. Sua liberdade era pior do que qualquer corrente. Sua liberdade separava-a de René. Dez vezes teria podido, sem sequer falar, segurar Jacqueline pelos ombros e fixá-la à parede com as duas mãos como se faz com uma borboleta e um alfinete. Jacqueline não teria se mexido e nem mesmo sorrido. Mas  O sentia-se agora como esses animais selvagens cativos que servem de chamariz para o caçador, ou que cercam para ele a caça, esperando sua ordem para saltar. Era ela quem, às vezes, pálida e trêmula apoiava-se à parede, obstinadamente pregada em seu silêncio, ligada por seu silêncio e bem feliz por se calar. Esperava mais do que uma permissão, pois esta permissão, já a tinha. Esperava uma ordem. Esta não lhe veio de René, mas de Sir Stephen.
À medida que se passavam os meses desde que René a tinha dado a Sir Stephen, O percebia com terror a crescente importância que este tomava aos olhos de seu amante. Ao mesmo tempo, aliás, compreendia que provavelmente enganava-se a este respeito, imaginando um progresso no fato ou no sentimento onde só havia progresso no reconhecimento deste fato ou na confissão deste sentimento. Rapidamente percebeu, entretanto, que de agora em diante, para passar a noite com ela, René escolhia as noites, e só estas que se seguiam àquelas em que Sir Stephen a fazia vir (Sir Stephen só ficando com ela até de manhã quando René se ausentava de Paris). Tinha também observado que quando estava presente em algumas dessas noitadas nunca tocava O, a não ser para oferecê-la melhor a Sir Stephen e para mantê-la à sua disposição quando se debatia. Era muito raro que ficasse e só ficava por um pedido expresso de Sir Stephen. Permanecia, então, vestido como da primeira vez, silencioso, acendendo um cigarro no outro, colocando madeiras no fogo e oferecendo bebida para Sir Stephen; mas ele próprio não bebia. O sentia que ele a observava como um domador observa o animal que ensinou, atento a que lhe dê a honra de sua perfeita obediência, mas também e mais ainda como uma guarda-costas junto a um príncipe, ou como o homem de confiança de algum chefe de tribo vigia a prostituta que foi buscar na rua para ele. A prova de que cedia realmente a uma vocação de servidor ou de acólito é que observava mais o rosto de Sir Stephen do que o seu - e O, sob seus olhos, sentia-se despojada da própria volúpia em que seus traços se afogavam: ele oferecia a Sir Stephen, que a tinha feito nascer, esta homenagem, com admiração e até gratidão, feliz de que este consentisse em ter prazer com alguma coisa que tivesse lhe dado. Sem dúvida tudo teria sido mais simples se Sir Stephen gostasse de rapazes. O não duvidava de que René, que entretanto não os amava, teria concedido a Sir Stephen desde os menores até os mais exigentes de seus pedidos. Mas Sir Stephen só amava as mulheres. Percebia que, sob as aparências do seu corpo que compartilhavam, atingiam algo mais misterioso e talvez mais agudo do que uma comunhão amorosa, uma união cuja própria idéia lhe era penosa, mas da qual não podia negar a realidade e  força. No entanto, por que esta partilha era de alguma forma abstrata? Em Roissy, o tinha pertencido, no mesmo momento e no mesmo ambiente, a René e a outros homens. Por que na presença de outros homens René abstinha-se não apenas de possuí-la, mas também, de dar-lhe ordens? (A única coisa que fazia era transmitir as ordens de Sir Stephen.) Perguntou-lhe isso, sabendo de antemão a resposta. “Por respeito”, respondeu. “Mas eu sou sua”, disse O . “Você é primeiro de Sir Stephen”. E era verdade, pelo menos no sentido em que a entrega que René fizera dela ao seu amigo era absoluta e que os menores desejos de Sir Stephen a seu respeito passavam à frente das decisões de René, ou à frente dos seus próprios desejos. Se René tivesse decidido que iriam jantar e que depois iriam ao teatro e Sir Stephen telefonasse uma hora antes  para pedir O, René vinha buscá-la no estúdio como tinham combinado, mas para conduzi-la até a porta de Sir Stephen e deixá-la ali. Uma vez, uma única vez, O tinha pedido a René que solicitasse a Sir Stephen que mudasse o dia, pois desejava muito acompanhá-lo à reunião onde tinham combinado irem juntos. René tinha-se recusado. “Minha queridinha”, dissera, “você ainda não compreendeu que não se pertence mais, e que o senhor que dispõe de você não sou mais eu? “ Não apenas tinha se recusado, mas ainda prevenira Sir Stephen sobre o pedido de O e, diante dela, tinha-lhe pedido que a punisse com crueldade suficiente para que nunca mais ousasse sequer imaginar que poderia esquivar-se. “Certamente”, respondera Sir Stephen. Isso tinha acontecido no pequeno cômodo oval com assoalho de mármore e um único móvel, que era um aparador negro incrustado de nacre, que dava para a grande sala amarela e cinza. René só demorou os minutos necessários para trair O e escutar a resposta de Sir Stephen. Logo depois cumprimentou-o com a mão, sorriu para O e partiu. Ela ainda o avistou pela janela quando atravessava o pátio; ouviu-o bater a porta do carro, o motor roncar, e percebeu sua própria imagem num pequeno espelho incrustado na parede; estava branca de desespero e de medo. Depois, quando passava na frente de Sir Stephen que abria para ela a porta que dava para a sala e a esperava, olhou-o maquinalmente: estava tão pálido quanto ela. Nesse momento, como um relâmpago, foi atravessada pela certeza de que ele a amava, que em seguida se dissipou. Embora não o acreditasse e ainda se recriminasse por tê-lo imaginado, isto a reconfortou e, a um gesto dele, tirou a roupa docilmente. Então, e pela primeira vez desde que Sir Stephen a fazia vir duas ou três vezes por semana usando-a lentamente, muitas vezes fazendo com que esperasse nua por uma hora antes de aproximar-se, escutando sem nunca responder às suas súplicas, pois às vezes suplicava, repetindo as mesmas injunções nos mesmos momentos _ como num ritual, tão bem sabia quando sua boca devia acariciá-lo e quando, de joelhos, com a cabeça afundada na seda do sofá devia oferecer-lhe apenas suas nádegas _ que agora possuía sem ferir mais, de tal modo tinha-se aberto para ele, pela primeira vez, então, apesar do medo que a decompunha, ou talvez mesmo por causa deste medo, apesar do desespero onde a tinha jogado a traição de René, mas talvez também por causa deste desespero, entregou-se completamente. E pela primeira vez, tão doces eram seus olhos que, ao encontrarem os olhos claros e ardentes de Sir Stephen, consentiam, que ele falou em francês, com muita intimidade. “O”, disse, “vou ter que amordaçá-la pois gostaria de chicoteá-la até o sangue. Permite? “ “Eu sou sua”, disse O . Estava de pé no meio da sala com os braços levantados e unidos que os braceletes de Roissy mantinham presos à argola do teto, onde antigamente havia um lustre, por uma pequena corrente, o que fazia seus seios saltarem. Sir Stephen acariciou-os, beijou-os e depois beijou sua boca uma vez, dez vezes. (Nunca antes a tinha beijado.) E quando finalmente colocou a mordaça que encheu sua boca com um gosto de pano molhado, empurrando sua língua para o fundo da garganta de modo a que seus dentes só pudessem mordê-la, docemente segurando-a pelos cabelos. Balançando na corrente, O oscilava sobre seus pés nus. “O, perdoe-me”, murmurou (nunca tinha lhe pedido perdão); depois afastou-se e bateu. Quando René voltou para a casa de O, depois da meia-noite, após ter ido sozinho à reunião onde deveriam ter ido juntos, encontrou-a deitada, tremendo no náilon branco de sua longa camisola. O próprio Sir Stephen a tinha trazido, deitado e, mais uma vez, beijado. O contou-lhe tudo. Disse-lhe também que não desejava mais desobedecer a Sir Stephen, compreendendo que René concluiria que lhe era necessário e doce ser batida, o que era verdade (mas esta não era a única razão). Tinha certeza, além disso, de que para René também era necessário que lhe batessem. Tanto tinha horror em lhe bater, a ponto de nunca poder resolver-se a faze-lo, quanto amava vê-la debater-se e ouvi-la gritar. Só uma vez, diante dele, Sir Stephen usara a chibata. René tinha inclinado O sobre a mesa mantendo-a imóvel e, num momento em que sua saia escorregou, levantara-a novamente. Talvez tivesse até mais necessidade  ainda da idéia de que enquanto não estava com ela, enquanto passeava ou trabalhava, O se contorcia, gemia e chorava sob o chicote, pedindo sua piedade sem obtê-la e sabendo que esta dor e esta humilhação eram-lhe infligidas pela vontade do amante a quem amava, e para o seu prazer. Em Roissy tinha feito com que os criados a chicoteassem. Em Sir Stephen tinha encontrado o senhor rigoroso que ele próprio não sabia ser. O fato de que o homem que mais admirava no mundo se deleitasse com ela e desse ao trabalho de torná-la dócil, aumentava, via-se bem, a paixão de René por ela. Todas as bocas que tinham perscrutado sua boca, todas as mãos que tinham agarrado seus seios e seu ventre, todos os sexos que a tinham penetrado e que haviam provado tão perfeitamente que estava prostituída, tinham-na ao mesmo tempo, de alguma forma, consagrado. Mas tudo isso não era nada aos olhos de René, ao lado da prova que lhe dava Sir Stephen. Todas as vezes em que saía de seus braços, René procurava nela a marca de um deus. O sabia que, se a traíra algumas horas antes, era para provocar novas marcas, ainda mais cruéis. Sabia também que as razões para provocá-las podiam desaparecer mas que Sir Stephen não voltaria atrás. Tanto pior. (Mas, na verdade, tanto melhor, pensava). René, perturbado, olhou durante muito tempo o corpo delgado onde grossas cicatrizes violetas pareciam cordas passadas sobre os ombros, as costas, as nádegas, o ventre, os seios e que às vezes se cruzavam. Em um ou outro lugar, gotejava um pouco de sangue. “Ah, eu a amo”, murmurou. Despiu-se com mãos trêmulas, apagou a luz e deitou-se junto a O, que gemeu no escuro, durante todo o tempo em que ele a possuiu.
As cicatrizes no corpo de O demoraram mais de um mês para se apagarem. Mesmo assim, nos lugares em que a pele tinha arrebentado, ficou uma linha esbranquiçada, como uma cicatriz muito antiga. Mas se pudesse se esquecer, a atitude de René e de Sir Stephen faria com que se lembrasse. René, obviamente, tinha uma chave do apartamento de O . Nunca tinha pensado em dar uma a Sir Stephen, provavelmente porque até agora Sir Stephen não tinha manifestado nenhum desejo de vir à sua casa. Mas o fato de que naquela noite a tivesse trazido, fez com que René compreendesse subitamente que esta porta, que só ele e O podiam abrir, talvez fosse considerada por Sir Stephen como um obstáculo, uma barreira, ou uma restrição desejada por René, e que se tornava derrisório dar-lhe O se não lhe desse ao mesmo tempo a liberdade de entrar em sua casa a qualquer momento. Tendo chegado a esta conclusão, mandou fazer uma chave, entregou-a a Sir Stephen e só a preveniu quando Sir Stephen a aceitou. O nem pensou em protestar e logo percebeu que encontrava na espera da vinda de Sir Stephen uma serenidade incompreensível. Esperou muito tempo, perguntando-se se ele a surpreenderia no meio da noite, se aproveitaria uma ausência de René, se viria sozinho ou mesmo se chegaria a vir. Não ousava falar disso a René. Uma manhã em que por acaso sua faxineira não tinha vindo, e em que tinha se levantado mais cedo do que de costume, quando, às dez horas, já vestida, preparava-se para sair, escutou uma chave rodar na fechadura e atirou-se gritando: “René!” (pois René costumava vir assim às vezes e nesse momento só pensou nele). Era Sir Stephen, que sorriu e disse: “Pois bem, vamos chamar René”. Mas René, retido em seu escritório por um encontro de negócios, só poderia chegar dentro de uma hora. O, com o coração batendo forte no peito (e, perguntando-se por que), olhava Sir Stephen que desligava o telefone. Em seguida ele se sentou na cama, tomou sua cabeça entre as mãos e entreabriu sua boca para beijá-la, sufocando-a de tal forma que se não a amparasse ela teria caído. Mas ele a segurou e a levantou. O não podia compreender por que sentia tanta perturbação, por que uma angústia tão grande cerrava sua garganta, pois, afinal, que poderia temer de Sir Stephen que já não tivesse experimentado? Ele pediu-lhe então que ficasse nua e ficou observando-a em silêncio enquanto O obedecia. Não estava habituada a ficar nua sob o seu olhar, como estava habituada ao seu silêncio e a esperar as  decisões do seu prazer? Teve que reconhecer consigo mesma que se iludia, e que, se estava perturbada pelo lugar e pela hora, pelo fato de que nesse quarto só ficara nua para René, a razão essencial de sua perturbação era, na verdade, sempre a mesma: a privação da posse de si mesma. A única diferença era que esta privação tornava-se mais sensível pelo fato de que não acontecia num lugar onde de alguma forma ia para sofre-la, nem à noite, participando assim do sonho, ou de uma existência clandestina, com relação à duração do dia, como Roissy tinha sido com relação à duração da sua vida com René. A grande luz de uma manhã de maio entregava o clandestino ao público: de agora em diante a realidade da noite e a realidade do dia seriam a mesma realidade. De agora em diante _ e O pensava: enfim! Daí, sem dúvida, é que nascia a estranha segurança misturada com pavor a que se entregava e que tinha pressentido sem compreender. De agora em diante não haveria mais hiato, tempo morto, remissão. Aquele que se espera, porque se espera, já está presente, já é o senhor: Sir Stephen, muito mais exigente mas muito mais seguro do que René. E por mais apaixonadamente que O amasse René e ele a ela, havia entre eles como uma igualdade (quando não fosse a igualdade de idade), que anulava nela o sentimento de obediência, a consciência da sua submissão. Queria imediatamente o que lhe pedia, unicamente porque lhe pedia. Mas parecia que René tinha lhe comunicado, com relação a Sir Stephen, sua própria admiração, seu próprio respeito. Obedecia às ordens de Sir Stephen como ordens enquanto tais, e era-lhe reconhecida porque ele as dava. Quer ele falasse com ela em francês ou em inglês, com intimidade ou com cerimônia, ela sempre o chamava de Sir Stephen, como uma estrangeira ou como uma serva. Pensava que a palavra “Senhor” seria mais conveniente se ousasse pronunciá-la assim, como lhe convinha, diante dele, a palavra escrava. Pensava também que tudo estava certo, já que René se sentia feliz por amar nela a escrava de Sir Stephen.       
Com suas roupas colocadas ao pé da cama, tendo posto seus chinelos de saltos altos, esperou então, com os olhos baixos, diante de Sir Stephen que estava apoiado à janela. O sol forte atravessava as cortinas de musselina de bolinhas e vinha esquentar seus quadris. O não procurava uma postura, mas pensava rapidamente que deveria ter se perfumado mais, que não tinha maquilado a ponta dos seios e que, felizmente, tinha seus chinelos, pois o esmalte de suas unhas começava a descascar. De repente tomou consciência de que o que esperava de fato, neste silêncio, nesta luz, e que não confessava, era que Sir Stephen lhe desse a ordem de ficar de joelhos diante dele para abrir sua calça e acaricia-lo. Mas não. Por ter pensado isto, tornou-se púrpura e, ao mesmo tempo que enrubescia, sentia-se ridícula por enrubescer: quanto pudor numa prostituta! Neste momento, Sir Stephen pediu a O que se sentasse à penteadeira para escutá-lo. A penteadeira não era uma penteadeira propriamente dita, mas uma mesinha baixa na parede sobre a qual estavam colocados frascos e escovas ao lado de um grande espelho Restauração onde O podia ver-se inteira, sentada numa poltrona baixa. Sir Stephen ia e vinha às suas costas enquanto falava; seu reflexo atravessava de tempos em tempos o cristal, por trás a imagem de O, mas num reflexo que parecia longínquo, porque a água do espelho era verde e um pouco turva. O, com as mãos abertas e os joelhos separados, gostaria de segurar o reflexo e de imobilizá-lo para responder mais facilmente, pois Sir Stephen, num inglês preciso, fazia perguntas sobre perguntas, as últimas que O poderia imaginar que fizesse. Mal tinha  começado, entretanto, interrompeu-se para derrubar O na poltrona, fazendo-a escorregar para a frente; com a perna esquerda levantada sobre o braço da poltrona e a outra ligeiramente dobrada, ficou assim, exposta no espelho ao seu próprio olhar e ao olhar de Sir Stephen, tão perfeitamente franqueada como se um amante invisível tivesse acabado de retirar-se dela, deixando-a assim, entreaberta. Sir Stephen recomeçou suas perguntas, com a firmeza de um juiz e uma habilidade de confessor. O não o via falar mas via-se responder. Se, desde que voltara de Roissy, tinha pertencido a outros homens além de René e ele próprio? Não. Se tinha desejado pertencer a outros que tivesse encontrado? Não. Se costumava acariciar-se à noite, quando estava só? Não. Se tinha amigas por quem se deixava acariciar ou a quem acariciava? Não (o não era mais hesitante). Mas, amigas a quem desejasse? Bom, havia Jacqueline, embora dizer amiga fosse demais. Colega seria mais correto, ou ainda companheira, como as moças bem-educadas se nomeiam entre si nos pensionatos de bom-tom. A este respeito, Sir Stephen perguntou-lhe se tinha fotos de Jacqueline e ajudou-a a levantar-se para ir buscá-las. Foi na sala que René encontrou-os quando entrou ofegante por ter subido os quatro andares correndo: O estava de pé diante da grande mesa onde brilhavam, brancas e negras como poças de água na noite, todas as imagens de Jacqueline. Sir Stephen, meio sentado sobre a mesa, pegava uma por uma à medida que O as entregava, colocando-as sobre a mesa; a outra mão penetrava sob o seu ventre. Desde esse momento, Sir Stephen, que sem deixá-la disse bom dia a René _ chegou a sentir que sua mão a penetrou mais fundo _ , não se dirigiu mais a ela, mas só a René. A razão disto pareceu-lhe clara: René presente, o acordo entre Sir Stephen e ele a seu respeito se estabelecia, mas fora dela, sendo ela apenas a oportunidade ou o objeto que não tinham mais que questionar e que nada mais tinha a responder. O que devia fazer, e até mesmo o que devia ser, era decidido sem sua participação. Aproximava-se o meio-dia. O sol, caindo em cheio sobre a mesa, enrolava a extremidade das fotos. O queria mudá-las de lugar e esticá-las para evitar que fossem destruídas, incerta de seus gestos e na iminência de gemer, de tal modo a mão de Sir Stephen a queimava. Não conseguiu, com efeito gemeu, e deu por si deitada de costas sobre a mesa, no meio das fotos, onde Sir Stephen, deixando-a, a tinha jogado bruscamente, com as pernas abertas e pendentes. Seus pés não tocavam o chão e um dos seus chinelos escapou caindo sem ruído sobre o tapete branco. Seu rosto encontrava-se diretamente sob o sol: fechou os olhos.
Deveria lembrar-se mas muito mais tarde, pois no momento isso não a impressionou, de que assim deitada assistiu ao diálogo entre Sir Stephen e René, como se não lhe dissesse respeito _ e ao mesmo tempo como um acontecimento já vivido. E era verdade que já tinha vivido uma cena análoga: quando René a levara pela primeira vez à casa de Sir Stephen tinham conversado sobre ela do mesmo modo. Mas, daquela primeira vez, não conhecia Sir Stephen e entre os dois, era René quem falava mais. Desde então, Sir Stephen tinha-a submetido a todas as suas fantasias, tinha-a moldado à sua medida, tinha exigido e obtido dela como algo natural as mais ultrajantes aquiescências. Não tinha mais nada a entregar que já não possuísse. Pelo menos era o que acreditava. Agora falava, ele que geralmente era tão silencioso diante dela, e suas palavras, como as de René quando respondia, mostravam que retomavam uma conversa freqüente entre eles, na qual era ela o assunto. Tratava-se do melhor partido que se podia tirar dela e de pôr  em comum o que o uso que dela faziam tinha ensinado a cada um. Sir Stephen reconheceu que certamente O era infinitamente mais sedutora quando seu corpo apresentava marcas, quaisquer que fossem, nem que fosse apenas porque estas marcas faziam com que não pudesse trapacear e indicassem imediatamente, ao serem vistas, que a seu respeito tudo era permitido. Porque saber era uma coisa: ter a prova disto, uma prova constantemente renovada, outra coisa. René tivera razão ao desejar que fosse chicoteada, disse Sir Stephen. Decidiram que continuaria a sê-lo, independentemente do prazer que se poderia ter com seus gritos e suas lágrimas, e tão freqüentemente quanto fosse necessário para que sempre subsistisse nela algum sinal. O escutava imóvel, sempre caída e ardente, e parecia-lhe que Sir Stephen, por uma estranha substituição, falava por ela e no seu lugar; como se ele próprio estivesse no seu corpo e tivesse experimentado a inquietação, a angústia, a vergonha, mas também o orgulho secreto e o prazer dilacerante que experimentava, particularmente quando estava sozinha na rua no meio dos passantes, ou quando subia num ônibus, ou encontrava-se no estúdio com as manequins e os maquinistas, pensando que qualquer um dos seres com quem estava, se lhe acontecesse algum acidente e que se encontrasse estendido ao chão e fosse chamado o médico, guardaria, mesmo desmaiado e nu, o seu segredo, mas ela não; seu segredo não dependia apenas do seu silêncio, não dependia apenas dela. Mesmo que tivesse vontade, não podia permitir-se o menor capricho _ e este era o sentido de uma das questões de Sir Stephen, sem que tivesse percebido isto imediatamente, não podia permitir-se os atos mais inocentes, como jogar tênis ou nadar. Era-lhe doce que isto lhe fosse proibido materialmente, como a grade do convento proíbe materialmente as moças enclausuradas de se pertencerem e de fugirem. Por esta mesma razão, como arriscar as chances de que Jacqueline não a recusasse sem correr, ao mesmo tempo, o risco de ter que explicar-lhe, se não a verdade, pelo menos uma parte da verdade? O sol tinha se movido e deixado seu rosto. Seus ombros colavam-se à película das fotos sobre as quais estava deitada; sentiu contra seus joelhos a borda áspera do casaco de Sir Stephen que se aproximava, junto com René. Colocaram-na de pé, segurando cada um uma de suas mãos. René apanhou seu chinelo. Era preciso vestir-se. Foi durante o almoço em Saint-Cloud, às margens do Sena, que Sir Stephen, novamente a sós com ela, recomeçou a interrogá-la. Ao pé de uma sebe de lingüísticas que delimitava o terraço sombreado onde estavam agrupadas as mesas do restaurante cobertas de toalhas brancas, havia uma platibanda de peônias vermelho-escuras, recém-abertas. O levou muito tempo para esquentar, com suas coxas nuas na cadeira de ferro onde se sentara obediente, levantando suas saias antes mesmo que Sir Stephen lhe fizesse sinal. Ouvia-se o murmúrio da água contra os barcos presos a uma plataforma de tábuas no fim da esplanada. Sir Stephen olhava para O que falava lentamente, decidida a não dizer uma palavra que não fosse verdadeira. O que Sir Stephen queria saber era por que Jacqueline lhe agradava. Ah! Não era difícil: era porque era bela demais para O, como as bonecas que são dadas às crianças pobres, tão grandes como elas, e nas quais não ousam tocar. Ao mesmo tempo sabia muito bem que se não se aproximava dela e se não lhe falava, era porque não tinha realmente este desejo. Neste momento, ergueu os olhos que tinha mantido abaixados para as peônias e percebeu que Sir Stephen olhava fixamente para seus lábios. Estaria escutando, ou apenas estaria atento ao som da sua voz, ao movimento dos seus lábios? Calou-se bruscamente e Sir Stephen ergueu os olhos e encontrou o seu próprio olhar. O que leu nele neste momento foi tão claro e foi tão claro para ele que ela realmente o percebera, que foi sua vez de empalidecer. Se a amava perdoar-lhe-ia por ter percebido? Não conseguia desviar os olhos, nem sorrir ou falar. Se a amava o que teria mudado? Se a tivessem ameaçado de morte, ficaria do mesmo modo incapaz de um gesto, incapaz de fugir; seus joelhos não a teriam levado. Sem dúvida nunca iria querer dela mais do que a submissão ao seu desejo, enquanto seu desejo durasse. Mas seria apenas esse desejo motivo suficiente para explicar que, desde o dia em que René a tinha entregado, a solicitasse e a retivesse cada vez mais freqüentemente, às vezes só por sua presença, sem nada lhe pedir? Ele estava diante dela, mudo e imóvel como ela; à mesa vizinha, alguns homens de negócios discutiam, bebendo um café tão preto e tão forte que seu perfume chegava até sua mesa. Duas americanas, desdenhosas e bem arrumadas, já acendiam seus cigarros no meio da refeição. O cascalho rangia sob os passos dos garçons _ um deles adiantou-se para encher novamente o copo de Sir Stephen, já vazio de três quartos, mas por que dar de beber a uma estátua, a um sonâmbulo? Não insistiu. O sentiu com delícias que, se o olhar cinzento e ardente deixava seus olhos, era para fixar-se em suas mãos, nos seus seios e, finalmente, para voltar aos seus olhos. Afinal viu nascer uma sombra de sorriso ao qual ousou responder. Mas era impossível pronunciar uma única palavra. Mal podia respirar. “O ...”, disse Sir Stephen. “Sim”, disse O, sentindo-se fraca. “O, o que vou dizer-lhe agora foi decidido junto com René. Mas eu também...” E interrompeu. O nunca soube se foi porque fechara os olhos de sobressalto, ou porque ele também sentia que lhe faltava o fôlego. Ele esperou. O garçom mudava os pratos e trazia o cardápio para O escolher a sobremesa. O entregou-o a Sir Stephen. Um souflé? Sim, um souflé. Demora vinte minutos. Está bem, vinte minutos. O garçom partiu. “Preciso mais do que vinte minutos”, disse Sir Stephen. E o que disse com uma voz igual, logo provou a O que pelo menos uma coisa era certa: se ele a amava, nada seria mudado por isso, a não ser que se considerasse como mudança este curioso respeito e este ardor com os quais lhe dizia: “Ficaria feliz se quisesse...”, em vez de simplesmente ordena-lhe que cedesse aos seus pedidos. Tratava-se, no entanto, realmente, de ordens às quais nem se cogitava que O pudesse subtrair-se. Ela fez esta observação e Sir Stephen concordou. “Mesmo assim responda”, disse. “Farei o que quiser”, respondeu O, e escutou de volta o eco que dizia: “Farei o que quiser”, costumava dizer a René. Murmurou: “René...” Sir Stephen escutou. “René sabe o que quero de você. Escute-me”. Falava em inglês, mas com uma voz baixa e surda que não se podia escutar nas mesas vizinhas. Parava quando os garçons se aproximavam, recomeçando no meio da frase, quando se afastavam. O que dizia parecia insólito neste lugar público e tranqüilo, no entanto o mais insólito era, sem dúvida, que pudesse dize-lo e O escutá-lo com tanta naturalidade. Lembrou-lhe primeiramente que na primeira noite em que tinha vindo à sua casa, tinha lhe dado uma ordem à qual ela não obedecera e observou que, embora a tivesse esbofeteado nessa ocasião, nunca mais tinha renovado sua ordem. Conceder-lhe-ia, de agora em diante, o que tinha então recusado? O compreendeu que não bastava apenas aquiescer, mas que ele queria escutar de sua própria boca, nos seus próprios termos, que sim, que se acariciaria todas as vezes que lhe pedisse. O concordou e reviu a sala amarela e cinza, a partida de René, sua revolta da primeira noite, o fogo que brilhava entre seus joelhos abertos quando estava deitada nua sobre o tapete. Esta noite, nesta mesma sala... Mas não, Sir Stephen não precisava, e continuava. Observou também que na sua presença nunca tinha sido possuída por René (nem por mais ninguém), como tinha sido por ele, na presença de René (e em Roissy por muitos outros homens). Não deveria concluir que só de René lhe viria a humilhação de entregar-se a um homem que não a amava _ e talvez de sentir prazer _ diante de um homem que a amava. (Insistia, tão longamente, tão brutalmente: logo abriria seu ventre, suas nádegas e sua boca aos seus amigos que a desejassem, quando a tivessem encontrado _ que O duvidava que esta brutalidade não se dirigisse tanto a ela quanto a ele próprio e reteve apenas o fim da frase: um homem que a amava. Que outra confissão podia ainda querer?) Aliás, ele próprio a levaria de volta a Roissy, durante o verão. Nunca tinha se admirado com o isolamento em que primeiro René e depois ele a mantinham? Via-os sempre sozinhos, às vezes juntos, às vezes alternadamente. Quando Sir Stephen recebia, em sua casa da rua de Poitiers, não convidava O . Nunca tinha almoçado ou jantado em sua casa. René também nunca a tinha apresentado a seus amigos além de Sir Stephen. Certamente continuaria mantendo-a isolada, pois de agora em diante Sir Stephen tinha privilégio de dispor dela. Que não pensasse que por lhe pertencer, isto significaria um caráter privativo; ao contrário.  (Mas o que tocava o coração de O é que Sir Stephen ia ficar com ela como René ficava, exatamente, identicamente). O anel de ferro e de ouro que usava na mão esquerda e que não podia tirar _ lembrava-se de como tinha sido escolhido tão justo que fora necessário forçar para faze-lo entrar no seu anular? _ , era sinal de que era uma escrava, mas uma escrava comum. O acaso tinha querido que desde o outono não tivesse encontrado filiados de Roissy que tivessem observado seus ferros ou manifestado que os tinham observado. A palavra ferros, usada no plural, onde tinha visto um equívoco quando Sir Stephen lhe dissera que os ferros iam-lhe bem, não era de modo algum um equívoco, mas uma fórmula de reconhecimento. Sir Stephen não tinha necessitado utilizar a segunda fórmula: ou seja, de quem eram os ferros que usava. Mas se atualmente a questão fosse colocada a O, que responderia? Hesitou. “A René e a você”, falou. “Não”, disse Sir Stephen, “a mim. René deseja que dependa primeiramente de mim”. O sabia muito bem, então por que trapaceava? Daqui a algum tempo, em todo caso antes que voltasse a Roissy, teria que aceitar uma marca definitiva, que não a dispensaria de ser uma escrava comum, mas que a designaria, além disso, como escrava particular, a sua, e ao lado da qual, as marcas do chicote ou da chibata sobre seu corpo, mesmo que fossem renovadas, seriam discretas e fúteis. (Mas que marca, em que consistiria, como seria definitiva? Aterrorizada, fascinada, O morria de necessidade de saber, e de saber imediatamente. Mas era evidente que Sir Stephen não iria explicar nada, ainda. E era verdade que teria que aceitar, consentir, no verdadeiro sentido da palavra, pois nada lhe seria infligido à força, nada que não tivesse consentido antes. Podia recusar; coisa alguma a retinha na sua escravidão além de seu amor e da sua própria vontade. O que a impedia de partir?) Entretanto, antes que esta marca lhe fosse imposta, antes mesmo que Sir Stephen adquirisse o hábito de chicoteá-la, como tinha sido decidido com René, de tal modo que as marcas ficassem constantemente visíveis, ser-lhe-ia dado um sursis _ o tempo necessário para convencer Jacqueline a se entregar. Neste momento, O levantou a cabeça admirada e olhou para Sir Stephen. Por quê? Por que Jacqueline? E se Jacqueline interessava a Sir Stephen, por que com relação  a O? “Por dois motivos”, disse Sir Stephen. “O primeiro, e o menos importante, é que desejo vê-la beijar e acariciar uma mulher” . “Mas admitindo que me queira”, gritou O, “como quer que obtenha seu consentimento para sua presença?” ”Isso é pouca coisa”, disse Sir Stephen, “se for necessário à traição, e estou certo de que obterá muito mais, pois o segundo motivo pelo qual desejo que Jacqueline lhe pertença, é que teremos que levá-la a Roissy”. O depositou a xícara de café que tinha na mão, tremendo tanto que derrubou sobre a toalha o fundo com borra e açúcar misturados que tinha sobrado. Como uma advinha, via na mancha escura que crescia, imagens insuportáveis: os olhos gelados de Jacqueline diante do criado Pierre, suas nádegas, que O não conhecia, certamente tão douradas quanto seus seios, oferecidas em seu grande vestido de veludo vermelho levantado, as lágrimas sobre a penugem do rosto, sua boca pintada aberta num grito, seus cabelos lisos como palha ceifada sobre a testa; não, era impossível; não ela, não Jacqueline. “Não é possível”, disse. “Sim”, replicou Sir Stephen. “E como pensa que se recrutam as moças para Roissy? Assim que a tiver trazido, não terá mais nada com isto e, aliás, se quiser, poderá partir. Venha”. Tinha se levantado bruscamente, deixando sobre a mesa o dinheiro da conta. O seguiu-o até o carro, subiu e sentou. Assim que entraram no Bois, Sir Stephen fez um desvio para estacionar numa pequena alameda, e tomou-a em seus  braços.



CAPÍTULO 3 - ANNE-MARIE E OS ANÉIS

Para encontrar uma desculpa, O pensava, ou gostaria de pensar, que Jacqueline lhe resistiria. Assim que se decidiu, esse engano se desfez. Os ares pudicos que Jacqueline tomava, fechando a porta do pequeno cômodo do espelho onde punha e tirava os seus vestidos, destinavam-se precisamente a atrair O e a dar-lhe o desejo de ultrapassar uma porta que, aberta, não se decidia a ultrapassar. Que a decisão de O viesse finalmente de uma autoridade fora dela e não fosse resultado dessa estratégia elementar, Jacqueline estava longe de imaginar. No começo, O divertiu-se com isto. Quando ajudava Jacqueline a pentear-se, ou quando Jacqueline, tendo tirado as roupas com as quais tinha posado, vestia sua malha justa no pescoço e colar de turquesas semelhantes a seus olhos, O experimentava um incrível prazer com a idéia de que nesta mesma noite Sir Stephen saberia cada um de seus gestos: se Jacqueline tinha-a deixado tocar seus seios separados e pequenos através da malha negra, se suas pálpebras tinham se abaixado tocando o rosto com os cílios mais claros que sua pele, se tinha gemido. Quando O  a beijava, ela se tornava pesada, imóvel e atenta em seus braços, deixava sua boca entreabrir-se e seus cabelos caírem nas costas. O precisava sempre ter o cuidado de apoiá-la contra o batente de uma porta ou numa mesa, de segurá-la pelos ombros. De outra forma teria caído ao chão, com os olhos fechados, sem uma queixa. Assim que O a deixava, voltava a ser de névoa e de gelo, risonha e estrangeira, e dizia: “Você me sujou de batom”, limpando a boca. Era a esta estrangeira que O amava trair, observando com toda a atenção _ para não se esquecer de transmitir nada _ o lento rubor de suas faces, o cheiro de mato do seu suor. Não se podia dizer que Jacqueline se defendesse ou que desconfiasse. Quando cedia aos beijos de O _ e por enquanto só lhe tinha concedido beijos, que recebia mas não restituía _, cedia bruscamente, e dir-se-ia totalmente, tornando-se repentinamente outra pessoa, por dez segundos, ou por cinco minutos. Durante o resto do tempo, era simultaneamente provocante e fugidia, de uma incrível habilidade para esquivar-se, arranjando-se sem nunca cometer um erro para não arriscar que algum gesto, alguma palavra, ou mesmo algum olhar, permitisse coincidir a triunfante com a vencida, e que se acreditasse que fosse tão fácil assim forçar sua boca. O único indício pelo qual seria possível guiar-se, e talvez suspeitar a inquietação próxima sob a água do seu olhar, era às vezes a sombra involuntária de um sorriso em seu rosto triangular, semelhante a um sorriso de gato, igualmente indeciso e fugaz, igualmente inquietante. O, entretanto, não demorou a perceber que duas coisas faziam com que ele aparecesse, sem que Jacqueline tivesse consciência disso. A primeira era os presentes que lhe davam e a segunda, a evidência do desejo que inspirava _ com a condição entretanto de que este desejo viesse de alguém que pudesse ser-lhe útil ou que a lisonjeasse. De que forma, então, O lhe era útil? Ou quem sabe, por alguma exceção, Jacqueline simplesmente sentia prazer em ser desejada por ela, fosse porque a admiração que O lhe devotava representava um conforto, fosse porque o desejo de uma mulher é sem perigo e sem conseqüências? Entretanto, O estava persuadida de que se tivesse oferecido a Jacqueline, em vez de um broche de madrepérola ou do último lenço de Hermès com Eu te amo impresso em todas as línguas do universo, do japonês ao iroquês, os dez ou vinte mil francos que pareciam constantemente faltar-lhe, Jacqueline teria parado de, praticamente, nunca ter tempo para vir almoçar ou tomar  lanche na casa de O, ou de esquivar-se às suas carícias. Mas O nunca teve provas disso. Acabara de contar isso a Sir Stephen, que recriminava sua lentidão, quando René se intrometeu. Nas cinco ou seis vezes em que René tinha vindo buscar O, quando Jacqueline estava no estúdio, os três tinham ido juntos ao Weber ou a um dos bares ingleses perto da Madeleine; René olhava para Jacqueline exatamente com aquela mistura de interesse, de segurança e de insolência com que olhava em Roissy as moças que estavam à sua disposição. Sobre a brilhante e sólida armadura de Jacqueline, a insolência escorregava sem atingi-la; Jacqueline nem sequer a percebia. Por uma curiosa contradição, O sentia-se atingida, achando insultante para com Jacqueline uma atitude que achava justa e natural para com ela própria. Queria tomar a defesa de Jacqueline ou desejava ser a única a possuí-la? Ser-lhe-ia bem difícil dize-lo, tanto mais que não a possuía _ ainda não. Mas se chegou a consegui-lo, é necessário reconhecer que foi graças a René. Por três vezes, saindo do bar, onde tinha feito Jacqueline beber muito mais uísque do que devia _ ficava com as maçãs do rosto rosadas e brilhantes e com os olhos duros _ , tinha-a levado em casa, antes de ir com O para a casa de Sir Stephen. Jacqueline morava numa dessas sombrias pensões de família de Passy, onde os russos brancos tinham se amontoado nos primeiros dias de emigração, e de onde nunca mais tinham saído. O vestíbulo era pintado imitando o carvalho, os balaústres da escada estavam cobertos de poeira nas cavidades e grandes manchas esbranquiçadas pelo uso marcavam os carpetes verdes. Todas as vezes em que René _ que nunca tinha ultrapassado a porta _ queria entrar, Jacqueline gritava que não, muito obrigada, e saltando para fora do carro, batia a porta atrás de si como se alguma língua de chama subitamente a tivesse atingido e queimado. E como era verdade, pensava O, que estava sendo perseguida pelo fogo! Era incrível que o adivinhasse, quando nada ainda a tinha instruído. Pelo menos sabia que devia tomar cuidado com René, por mais insensível ao seu desprendimento que parecesse ser ( mas era real esse desprendimento? E quanto a parecer insensível, eram dois no jogo, pois um valia bem o outro). A única vez em que Jacqueline deixara O entrar em sua casa e acompanhá-la ao seu quarto, compreendera por que recusava tão ferozmente a René a permissão para entrar. O que teria acontecido com seu prestígio, com sua lenda preta e branca sobre as páginas brilhantes das luxuosas revistas de moda, se alguém, que não fosse uma mulher como ela, tivesse visto de que sórdido covil saía todos os dias o animal lustrado? A cama nunca estava arrumada, apenas coberta, e o lençol era cinza e engordurado, pois Jacqueline nunca se deitava sem cobrir seu rosto com creme e dormia muito rápido para pensar em secá-lo. De uma cortina, que antigamente deveria cobrir a cabine do toilette, restavam apenas dois anéis sobre o reposteiro, de onde pendiam ainda alguns fiapos. Nada mais tinha cor, nem o tapete, nem o papel cujas flores rosas e cinzas subiam como uma vegetação que tivesse se tornado louca e petrificada sobre uma falsa treliça branca. Seria necessário arrancar tudo, deixar as paredes nuas, jogar fora os tapetes, raspar o assoalho. Em todo o caso, retirar imediatamente as linhas de gordura que, como extratos, riscavam o esmalte do lavabo; limpar e pôr em ordem imediatamente os frascos de cremes de limpeza e de outros cremes, limpar o pó-de-arroz, a penteadeira, jogar fora os algodões sujos, abrir as janelas. Mas, altiva, fresca e limpa, cheirando a lavandas e a flores selvagens, impecável, imaculada, Jacqueline pouco se importava com seu chiqueiro. Por outro lado, o que a incomodava e lhe pesava, era sua família. Foi por causa do chiqueiro, sobre o qual tivera a candura de falar, que René sugeriu a O que fizesse a proposta que devia mudar sua vida, mas foi por causa de sua família que Jacqueline aceitou. Era que Jacqueline viesse morar com O. Dizer uma família era pouco:dir-se-ia mais uma tribo, ou melhor, uma horda. Avó, tia, mãe, e até uma criada, quatro mulheres entre setenta e cinqüenta anos, pintadas, barulhentas, dissimuladas sob as sedas negras e o azeviche, soluçando às quatro horas da manhã em meio à fumaça dos cigarros, junto ao pequeno lume vermelho dos ícones, quatro mulheres tomando copos de chá, falando uma língua áspera que Jacqueline teria dado a metade de sua vida para esquecer, deixavam-na louca por ter que obedecer-lhes, e até por escutá-las e por vê-las. Quando via sua mãe levar à boca um pedaço de açúcar para tomar seu chá, ela largava seu próprio copo e voltava ao seu covil empoeirado e seco, deixando as três, avó, mãe e irmã de sua mãe, as três morenas com cabelos tingidos, e sobrancelhas espessas, com seus grandes olhos de coça reprovadores, no quarto de sua mãe que servia de sala, com a criada que acabava de assemelhar-se a elas. Fugia e batia a porta ao passar, enquanto chamavam por ela: “Choura, Choura, pombinha”, como nos romances de Tolstoi, pois não se chamava Jacqueline. Jacqueline era um nome para sua profissão, um nome para esquecer seu verdadeiro nome, e com ele o gineceu sórdido e terno, um nome para estabelecer-se no mundo francês, um mundo sólido onde existem homens que se casam com você, e que não desaparecem em misteriosas expedições como seu pai que nunca tinha conhecido, marinheiro balta perdido nas neves do pólo. Só com ele se parecia, pensava com raiva e delícia, só com ele, de quem tinha os cabelos e as maças do rosto, assim como a pele trigueira e os olhos amendoados. O único reconhecimento que sentia por sua mãe era o de lhe ter dado por pai este demônio claro que a neve tinha recuperado como a terra recupera os outros homens. Mas tinha-lhe raiva por ela tê-lo esquecido o suficiente para que, um belo dia, de uma relação breve, tivesse nascido uma menina morena, uma meia-irmã declarada de pai desconhecido, que se chamava Natalie, e que tinha agora quinze anos. Só se via Natalie nas férias. Quanto ao seu pai, nunca. Mas pagava a pensão de Natalie num colégio perto de Paris e mandava à mãe de Natalie uma renda da qual viviam mediocremente, num ócio que consideravam um paraíso, as três mulheres e a criada _ e até mesmo Jacqueline até este dia. O que Jacqueline ganhava na sua profissão de manequim, ou como diziam à americana, de modelo, quando não gastava com pinturas, lingerie, sapatos de algum grande sapateiro ou roupas de algum grande costureiro _ a preço de favor, mas que ainda assim ficava muito caro _ era tragado pela bolsa familiar e desaparecia não se sabe em quê. Jacqueline certamente teria podido fazer-se sustentar, e não lhe tinham faltado oportunidades. Aceitara um ou dois, menos porque a agradavam _ não a desagradavam _, do que para provar a si mesma que era capaz de inspirar desejo e amor. O único dos dois que era rico _ o segundo _ tinha lhe dado de presente uma pérola muito bonita, meio rosada, que usava na mão esquerda; mas tinha se recusado a ir morar com ele e, como ele recusava-se a casar, tinha-o deixado sem muito arrependimento, aliviada por não estar grávida ( uma vez pensou que estava grávida e viveu alguns dias de pavor). Não, morar com um amante era perder a dignidade, perder suas chances de futuro, fazer o que sua mãe tinha feito com o pai de Natalie; era impossível. Mas com O, tudo mudava. Uma ficção polida permitia que se acreditasse que Jacqueline simplesmente se instalava com uma colega para dividir as despesas. O serviria ao mesmo tempo a dois objetivos: representaria junto a Jacqueline o papel do amante que sustenta ou ajuda a sustentar a moça que ama, e o papel, em princípio oposto, de caução moral. A presença de René não era tão oficial, que a ficção arriscasse ser comprometida. Mas no fundo da decisão de Jacqueline, quem sabe se esta própria presença não tenha sido o verdadeiro motivo de sua aceitação? De qualquer forma, coube a O e só a O, ir fazer a proposta à mãe de Jacqueline. Nunca O tivera o sentimento tão forte de ser o traidor, o espião, o enviado de uma organização criminosa, como quando encontrou-se diante dessa mulher que a agradecia pela amizade que tinha por sua filha. Ao mesmo tempo, no fundo de seu coração, negava sua missão e o motivo de sua presença. Sim, Jacqueline viria para sua casa mas O não poderia, nunca, obedecer tão bem a Sir Stephen como para entregar-lhe Jacqueline. E no entanto... Pois assim que Jacqueline instalou-se na casa de O, onde recebeu _ a pedido de René _ o quarto que este às vezes fingia ocupar (fingia, porque dormia sempre na grande cama de O), O foi surpreendida, contra toda expectativa, pelo violento desejo de possuir Jacqueline a qualquer preço, mesmo que para consegui-lo tivesse que entregá-la. Afinal de contas, pensava, a beleza de Jacqueline é suficiente para protegê-la, por que tenho que me meter? e se tiver que ser reduzida ao ponto em que me encontro reduzida, será um mal assim tão grande? pensava, mal se confessando, entretanto perturbada ao imaginar a doçura que encontraria em ver Jacqueline nua e sem defesa, junto dela, e como ela.
Na semana em que Jacqueline se instalou, com toda a permissão de sua mãe, René mostrou-se muito solícito, convidando as duas quase todos os dias para jantar e levando-as a ver filmes que curiosamente escolhia entre os filmes policiais, histórias de traficantes de drogas ou de tráfico de brancas. Sentava-se entre as duas, segurando docemente a mão de cada uma, e não dizia nada. Mas O via-o, a cada cena de violência, espreitar alguma emoção no rosto de Jacqueline. Só podia perceber nela um certo aborrecimento, que abaixava os cantos de sua boca. Levava-as depois para casa, e no carro conversível, com os vidros abaixados, o vento da noite e a velocidade espalhavam os cabelos claros e espessos de Jacqueline sobre suas faces duras, sua testa pequena, a até sobre seus olhos. Jacqueline sacudia a cabeça para pô-los no lugar, passando a mão como costumam fazer os rapazes. Uma vez estabelecido que morava com O, e que O era amante de René, pareciam-lhe naturais nesta situação, as familiaridades de René. Admitia sem reclamar que René entrasse em seu quarto com o pretexto de que tinha esquecido ali algum documento, o que não era verdade. O sabia, pois ela própria tinha esvaziado as gavetas da grande secretária holandesa com flores em marchetaria, tampa sempre aberta, forrada de couro e que combinava tão mal com René. Por que a tinha? De quem teria vindo? Sua elegância pesada, suas madeiras claras, eram o único luxo do cômodo um tanto sombrio, que dava para o norte, sobre o pátio, e cujas paredes cinzentas, cor de aço, e o assoalho encerado e frio contrastavam com os cômodos alegres que davam para o cais. Isso era bom, Jacqueline não iria gostar e seria mais fácil que aceitasse compartilhar com O os dois cômodos da frente, e dormir com O, assim como tinha aceitado compartilhar, desde o primeiro dia, o banheiro, a cozinha, as pinturas, os perfumes e as refeições. Mas O se enganava. Jacqueline era apaixonadamente ligada ao que lhe pertencia _ como por exemplo à sua pérola rosa _ mas de uma indiferença absoluta para com o que não lhe pertencia. Morando num palácio, só se interessaria por ele se lhe tivessem dito: o palácio é seu, e que o tivessem provado por um ato registrado em tabelião. Que o quarto cinzento fosse agradável ou não era-lhe igual, e não foi para fugir dele que veio deitar-se na cama de O. Também não foi para provar a O algum reconhecimento que não sentia _ e que no entanto O atribuiu-lhe, feliz ao mesmo tempo por abusar disto, como acreditava. Jacqueline amava o prazer, e achava agradável e prático recebê-lo de uma mulher, em cujas mãos não arriscava nada.
Cinco dias depois de ter desfeito as malas, com a ajuda de O, quando pela primeira vez René as trouxe para casa depois de terem jantado, por voltas das dez horas, partiu _ pois foi embora, como das duas outras vezes _ , Jacqueline, nua e ainda molhada do banho, simplesmente apareceu na soleira da porta do quarto de O, dizendo: “Tem certeza de que ele não vai voltar?” e, mesmo sem esperar a resposta, introduziu-se na grande cama. Deixou-se beijar e acariciar com os olhos fechados, sem responder a nenhuma carícia; no começo gemeu um pouco, depois mais forte, depois mais forte ainda e no fim gritou. Adormeceu sob a luz da lâmpada rosa, atravessada na cama, com os joelhos caídos e separados, o busto um pouco de lado, as mãos abertas. Via-se o suor brilhando entre seus seios. O cobriu-a e apagou a luz. Duas horas mais tarde, quando recomeçou, no escuro, Jacqueline deixou-se possuir, mas murmurou: “Não me canse demais, vou levantar cedo amanhã”.
Foi nessa época que Jacqueline, além do seu trabalho intermitente de modelo, começou a exercer outra profissão não menos irregular, mas mais absorvente: foi contratada para representar pequenos papéis no cinema. Era difícil saber se estava orgulhosa ou não, se via aí ou não o primeiro passo numa carreira na qual gostaria de tornar-se célebre. Arrancava-se da cama de manhã, com mais raiva do que entusiasmo, tomava uma ducha e se maquilava com pressa, aceitando apenas uma xícara grande de café preto que O mal tinha tido tempo de preparar, e permitia que beijasse a ponta de seus dedos com um sorriso maquinal e um olhar cheio de rancor: O estava doce e quente no seu roupão de vicunha branca, com os cabelos escovados, o rosto lavado, o aspecto de quem ainda vai dormir. No entanto não era verdade. O ainda não ousara explicar a Jacqueline por quê. A verdade era que todos os dias em que Jacqueline partia para o estúdio de Boulogne onde representava, na hora em que as crianças vão para a escola e os empregados para seus escritórios, O, que antes costumava ficar em casa durante toda a manhã, vestia-se por sua vez: “Vou enviar-lhe meu carro” , dissera Sir Stephen, “para levar Jacqueline para Boulogne e depois voltar para buscá-la”. E assim O passou a ir todas as manhãs à casa de Sir Stephen, no momento em que o sol ainda batia apenas no leste das fachadas; os outros muros estavam frescos, mas nos jardins a sombra se encolhia sob as árvores. Na rua de Poitiers, a limpeza da casa ainda não tinha acabado. A mulata Norah acompanhava O ao quarto onde na primeira noite Sir Stephen tinha-a deixado dormir e chorar sozinha, esperava que O colocasse suas luvas, sua bolsa e suas roupas sobre a cama para pegá-las e guardá-las, diante de O, num armário do qual guardava a chave; depois, entregando-lhe chinelos envernizados de saltos altos que faziam barulho quando caminhava, ia à sua frente, abrindo as portas para que passasse, até a porta do escritório de Sir Stephen, onde se afastava para deixá-la passar. O nunca se acostumou com estes preparativos, e pôr-se nua diante desta velha mulher paciente, que não lhe falava nada e que mal a olhava, parecia-lhe tão temível como ficar nua em Roissy sob os olhares dos criados. Em seus chinelos de feltro, como uma religiosa, a velha mulata deslizava em silêncio. Durante todo o tempo em que a seguia, O não conseguia desviar os olhos das duas pontas de sua touca e de sua mão escura e magra sobre a maçaneta de porcelana cada vez que abria uma porta, uma mão que parecia dura como madeira velha. Ao mesmo tempo, por um sentimento totalmente oposto ao terror que lhe inspirava_ e cuja contradição O não conseguia explicar _ experimentava uma espécie de orgulho no fato de que esta criada de Sir Stephen ( o que significava para Sir Stephen? e por que confiava-lhe este papel de preparadora, para o qual parecia tão pouco adequada?) fosse testemunha de que ela também _ como talvez outras trazidas do mesmo modo por ela, quem sabe? _ merecia ser utilizada por Sir Stephen. Pois Sir Stephen provavelmente a amava; sem dúvida a amava, e O sentia que se aproximava o momento em que não mais ia deixá-la apenas perceber, mas dizê-lo claramente. No entanto, na medida em que seu amor e seu desejo por ela aumentavam, tornava-se mais longamente, mais lentamente, mais minuciosamente exigente. Conservada assim ao seu lado todas as manhãs, muitas vezes mal a tomando, querendo apenas ser acariciado por ela. O prestava-se ao que lhe pedia com o que só pode ser chamado de reconhecimento, ainda maior quando o pedido tomava a forma de uma ordem. Cada entrega era garantia de que uma outra entrega seria exigida dela, de cada uma desempenhava-se como de uma dívida; era estranho que se sentisse satisfeita: no entanto, sentia-se. O escritório de Sir Stephen, situado acima da sala amarela e cinza onde costumava ficar à tarde, era mais estreito e com o teto mais baixo. Não tinha sofá nem divã, apenas duas poltronas Regência cobertas de tapeçaria florida. O sentava-se nelas às vezes, mas Sir Stephen geralmente preferia mantê-la mais perto dele, ao alcance de sua mão, e mesmo quando não se ocupava com ela, que ficasse sentada sobre a escrivaninha, à sua esquerda. A escrivaninha encontrava-se perpendicular à parede e O podia encostar-se nas prateleiras que continham alguns dicionários e anuários encadernados. Havia um telefone que ficava junto à sua coxa esquerda, e, cada vez que tocava, ela estremecia. Era ela quem atendia, dizendo: “Da parte de quem? “, repetia o nome em voz alta e passava a comunicação para Sir Stephen, ou desculpava-o, dependendo do sinal que este lhe fazia. Quando tinha que receber alguém, a velha Norah vinha anunciar, Sir Stephen fazia esperar o tempo necessário para Norah conduzir O ao quarto onde tinha tirado a roupa, e onde Norah vinha novamente buscá-la quando Sir Stephen mandava chamá-la, já tendo saído a visita. Como Norah entrava e saía do escritório várias vezes todas as manhãs, para levar café ou a correspondência para Sir Stephen, ou para abrir ou fechar as persianas, ou para esvaziar os cinzeiros, e como era a única a ter o direito de entrar, mas tendo ordem também de não bater e, enfim, como sempre que tinha algo a dizer esperava em silêncio que Sir Stephen lhe dirigisse a palavra, aconteceu que uma vez O encontrava-se curvada sobre a escrivaninha, com a cabeça e os braços apoiados sobre o couro e as ancas oferecidas esperando que Sir Stephen a penetrasse, no momento em que Norah entrava. Levantou a cabeça. Se Norah, como de costume, não a tivesse olhado, não teria se movido. Mas, desta vez, era claro que Norah queria encontrar o olhar de O. Estes olhos negros, brilhantes e duros, fixos nos seus, que não sabia se eram ou não indiferentes, num rosto carrancudo e imóvel, perturbaram O de tal maneira, que fez um movimento para escapar de Sir Stephen. Ele compreendeu; com uma mão segurou sua cintura junto à mesa para que não pudesse escorregar, entreabrindo-a com a outra. Ela, que sempre o recebia o melhor possível, estava contraída e fechada apesar de si mesma e Sir Stephen teve que forçá-la. Mesmo quando o fez, sentia que o orifício de suas nádegas apertava-se, e foi com dificuldade que a penetrou completamente. Só se retirou quando pôde ir e vir nela sem dificuldade. Então, ao recomeçar, disse a Norah para esperar, e que poderia levar O para vestir-se assim que tivesse terminado. Antes de dispensá-la, entretanto, beijou-a na boca com ternura. Foi por este beijo que, dias mais tarde, O teve a coragem de dizer-lhe que Norah lhe dava medo. “Espero que sim” , respondeu Sir Stephen. “E quando usar minha marca e meus ferros, como o fará em breve _ se consentir _ terá mais motivos para temê-la” “Por quê? “, disse O “e que marca, que ferros? Já estou usando este anel...” “Isto concerne a Anne-Marie, a quem prometi mostrá-la. Vamos à sua casa depois do almoço. Quer? É uma das minhas amigas, e deve ter observado que até agora nunca lhe apresentei meus amigos. Quando sair de suas mãos, dar-lhe-ei verdadeiros motivos para ter medo de Norah”. O não ousou insistir. Esta Anne-Marie com quem a ameaçavam, intrigava-a mais do que Norah. Era dela que Sir Stephen falara quando tinham almoçado em Saint-Cloud. E era bem verdade que O não conhecia nenhum dos amigos, nenhumas das relações de Sir Stephen. Vivia, enfim, em Paris, fechada no seu segredo, como se estivesse fechada num bordel; os únicos que tinham direito ao seu segredo, René e Sir Stephen, tinham, ao mesmo tempo, direito ao seu corpo. Para ela, as palavras abrir-se a alguém, que significa confiar-se, só tinha um sentido literal, físico, e aliás absoluto, pois efetivamente abria-se em todas as partes do seu corpo que fosse possível. Parecia-lhe também que esta era a sua razão de existir e que Sir Stephen e René também pensavam assim, pois quando falavam de seus amigos, como em Saint-Cloud, era para dizer-lhe que obviamente estaria à disposição daqueles a quem a apresentariam, caso a desejassem. Mas para imaginar Anne-Marie, e o que Sir Stephen esperava para ela de Anne-Marie, O não tinha nada que a instruísse, nem mesmo sua experiência em Roissy. Sir Stephen também lhe dissera que queria vê-la acariciar uma mulher, seria isto? (Mas tinha se referido precisamente a Jacqueline...) Não, não era isto. “Mostra-la”, tinha acabado de dizer. Com efeito; mas quando deixou Anne-Marie,  O não sabia mais do que isso.
Anne-Marie morava perto do Observatório, num apartamento que se comunicava com um grande ateliê, no alto de um prédio novo que dominava o cimo das árvores. Era uma mulher magra, da idade de Sir Stephen, e cujos cabelos negros misturavam-se com mechas cinzas. Seus olhos azuis eram tão escuros que pareciam negros. Ofereceu a Sir Stephen e a O, em pequenas xícaras, um café muito preto, quente e amargo que reconfortou O. Quando terminou de beber e levantou-se de sua poltrona para colocar a xícara vazia sobre a um aparador, Anne-Marie segurou-a pelo pulso e, voltando-se para Sir Stephen, disse-lhe: “Permite-me?” “Por favor”, disse Sir Stephen. Então, Anne-Marie, que até agora não lhe dirigira a palavra, nem sorrira quando Sir Stephen tinha lhe apresentado O, disse-lhe docemente, com um sorriso tão terno que parecia estar lhe dando um presente: “Deixe-me ver seu ventre e suas nádegas, menina. Mas será melhor que fique nua.”. Enquanto O obedecia, Anne-Marie acendia um cigarro. Sir Stephen não desviara os olhos de O. Deixaram-na de pé por cerca de cinco minutos. Não havia espelho na peça, mas O percebia vagamente seu reflexo na laca negra de um paravento. “Tire também suas meias” , disse Anne-Marie repentinamente. “Veja”, continuou, “não deve usar ligas, vão deformar suas coxas”. E mostrou, com a ponta do dedo, o ligeiro sulco que marcava, acima do joelho, o lugar onde O enrolava sua meia em volta da larga liga elástica. “Quem a fez fazer isto?” E antes que O tivesse respondido: “Foi o rapaz por quem me foi dada” disse Sir Stephen, “René, você o conhece”. E acrescentou: “Mas certamente concordará com sua opinião” . “Bom”, disse Anne-Marie, “vou lhe dar meias longas e escuras, O, e uma cinta-liga para segurá-las, mas uma cinta-liga com barbatanas, que marque sua cintura”. Quando Anne-Marie tocou a sineta, uma jovem loura e silenciosa trouxe meias pretas muito finas e uma cinta-liga em tafetá de náilon negro, mantida esticada por longas barbatanas bem juntas e curvas, que achatavam o ventre e a cintura. O, sempre de pé, equilibrando-se em um pé e no outro, vestiu as meias que subiam até o alto de suas coxas. A jovem loura vestiu-lhe a cinta, que se abotoava na cintura, de um lado das costas. Também nas costas, como nos espartilhos de Roissy, um longo cordel permitia que se apertasse ou se alargasse à vontade. O prendeu suas meias na frente e dos lados nas quatro ligas e, em seguida, a jovem encarregou-se de apertar os laços o mais estreitamente possível. O sentiu sua cintura e o seu ventre afundarem sob a pressão das barbatanas, que desciam pelo ventre até o púbis, que os deixavam livres, assim como os quadris. A cinta era mais curta atrás, deixando as nádegas totalmente livres. “Ficará muito melhor”, disse Anne-Marie dirigindo-se a Sir Stephen, ”quando tiver a cintura totalmente reduzida; além disso, se não tiver tempo para tirar sua roupa, verá que a cinta não atrapalha. Aproxime-se agora, O” A moça saiu, e O aproximou-se de Anne-Marie, que estava sentada numa poltrona baixa _ uma poltrona baixa forrada de veludo cor de cereja. Anne-Marie passou a mão com suavidade sobre seus quadris, em seguida, derrubando-a sobre um pufe semelhante ao sofá, levantou e abriu suas pernas, ordenando-lhe que não se mexesse, segurou os lábios de seu ventre. Assim se expõem as guelras dos peixes no mercado e os beiços dos cavalos nas feiras campestres, pensou O. Lembrou-se que o criado Pierre tinha feito a mesma coisa na primeira noite de Roissy, depois de acorrentá-la. Afinal, não se pertencia mais e o que nela pertencia-lhe ainda menos era, certamente, esta metade de seu corpo que podia servir tão bem, por assim dizer excluindo-a. Por que, todas as vezes em que constatava isto, ficava, não surpresa, mas como persuadida novamente, com a mesma perturbação igualmente forte que a imobilizava e que a entregava muito menos àquele em cujas mãos se encontrava do que àquele que a tinha entregado entre as mãos estranhas? Em Roissy, quando a possuíam entregava-se a René; e aqui a quem? A René ou a Sir Stephen? Ah, não sabia mais; mas porque não queria mais saber, pois realmente era a Sir Stephen que pertencia; desde quando?.... Anne-Marie fez com que ficasse de pé e se vestisse. “Pode trazê-la quando quiser”, disse a Sir Stephen, “estarei em Samois (Samois... O esperava Roissy; pois bem, não, não se tratava de Roissy ; então de que se tratava?) dentro de dois dias. Vai ficar muito bem.”   (O que iria ficar bem?) “Daqui a dez dias se quiser” , respondeu Sir Stephen, “no começo de julho.”
No carro que a levou de volta para casa, Sir Stephen tendo ficado com Anne-Marie, O lembrou-se da estátua que vira quando criança no Luxembourg: uma mulher cuja cintura tinha sido tão apertada e parecia tão fina entre os seios pesados e as nádegas carnudas _ estava inclinada para a frente para olhar-se numa fonte, também em mármore, tão cuidadosamente representada aos seus pés _ que dava medo de que o mármore se quebrasse. Se Sir Stephen o desejava ... Quanto à Jacqueline, seria fácil dizer-lhe que era um capricho de René. A este respeito, O sentiu novamente a preocupação da qual tentava fugir sempre que voltava para casa, admirando-se entretanto de que não fosse mais lancinante: por que, desde que Jacqueline se mudara para lá, René tomava o cuidado, não tanto de deixá-la a sós com Jacqueline, o que se compreendia, mas também de não ficar mais a sós com O? Aproximava-se julho, quando deveria partir e certamente não iria vê-la na casa desta Anne-Marie para onde Sir Stephen a mandaria, e seria preciso então resignar-se a encontrá-lo apenas à noite quando lhe agradava convidar a ela e a Jacqueline _ e já não sabia o que era agora mais desconcertante ( pois só existiam entre eles estas relações essencialmente falsas por serem assim limitadas) _ ou então de manhã, algumas vezes, quando se encontrava na casa de Sir Stephen e Norah o introduzia depois de tê-lo anunciado? Sir Stephen sempre o recebia, sempre beijava O, acariciava o bico de seus seios, fazia com Sir Stephen projetos para o futuro onde não se tratava dela, e ia embora. Tinha-a dado a Sir Stephen de tal forma que não mais a amava? O foi tomada de um pânico tão grande, que desceu automaticamente no cais diante de sua casa e, em vez de conservar o carro, começou a correr imediatamente à procura de um táxi. É difícil encontrar táxis no cais de Béthune. O correu até o boulevard Saint-Germain e ainda teve que esperar. Estava suando e sem fôlego, pois a cinta cortava a sua respiração, quando finalmente um táxi diminuiu a velocidade na esquina da rua do Cardinal_Lemoine. Fez-lhe sinal, deu o endereço do escritório onde René trabalhava e subiu, sem saber se René estaria e, se estivesse, se a receberia. Nunca tinha ido lá. Não se surpreendeu com o grande prédio numa rua perpendicular aos Champs-Elysées, nem com os escritórios à americana, mas a atitude de René, que no entanto recebeu-a imediatamente, a desconcertou. Não que fosse agressivo ou cheio de recriminações; teria preferido que a recriminasse, pois afinal não lhe tinha permitido vir incomodá-lo, e talvez o estivesse incomodando muito. Mandou sua secretária sair, pedindo-lhe para não anunciar ninguém e não lhe passar nenhum telefonema. Depois, perguntou a O o que estava acontecendo. “Tive medo de que não me amasse mais” , disse O. Ele riu: “Assim, de repente?” “Sim, no carro, quando voltava de...”, René riu mais ainda: “Mas eu sei, como é boba. Da casa de Anne-Marie. E vai para Samois daqui a dez dias. Sir Stephen acaba de me telefonar”. René estava sentado na única poltrona confortável do seu escritório, diante da mesa, e O tinha se encolhido em seus braços. “O que farão comigo me é indiferente” , murmurou, “mas diga-me se me ama ainda”. “Meu coraçãozinho, eu a amo”, disse René, “mas quero que me obedeça, e você me obedece muito mal. Contou a Jacqueline que pertencia a Sir Stephen, falou-lhe de Roissy?” O disse que não. Jacqueline aceitava suas carícias, mas no momento em que soubesse que O... René não a deixou acabar, recostou-se na poltrona que acabava de deixar e levantou sua saia: “Ah! essa é a cinta”, disse. “É verdade que ficará muito mais agradável quando tiver a cintura bem estreita”. Em seguida, possuiu-a e O percebeu que há tanto tempo não a possuía, que no fundo duvidara até de que ainda tivesse algum desejo por ela, e viu nisso, ingenuamente, uma prova de amor. “Sabe”, disse-lhe em seguida, “está sendo tola em não falar com Jacqueline. Precisamos dela em Roissy, seria mais cômodo que fosse você quem a levasse. Além disso, quando voltar da casa de Anne-Marie, não poderá mais lhe esconder sua verdadeira condição.” O perguntou por quê. “Você vai saber”, continuou René. “Tem ainda cinco dias, e somente cinco dias, pois Sir Stephen pretende, cinco dias antes de enviá-la para Anne-Marie, recomeçar a chicoteá-la todos os dias; certamente ficará com marcas, como vai explicá-las a Jacqueline?” O não respondeu. O que René não sabia era que Jacqueline não se interessava por O a não ser pela paixão que O lhe devotava, e que nunca a olhava. Mesmo que estivesse coberta de cicatrizes de chicote, bastava que tivesse o cuidado de não tomar banho na frente de Jacqueline, de vestir uma camisola e Jacqueline nada veria. Não tinha observado que O não usava calcinhas, não observava nada: O não a interessava. “Escute”, continuou René, “em todo o caso tem uma coisa que deve dizer-lhe imediatamente: é que estou apaixonado por ela.” “E isso é verdade?” perguntou O. “Quero tê-la”, disse René,  “e como você não pode ou não quer fazer nada, farei o que for necessário” ”Quanto a Roissy, não vai querer nunca”, disse O.  “Ah, não? Pois bem”, disse René,  “vamos obrigá-la”.
Já era tarde da noite, quando Jacqueline se deitou e O puxou o lençol para olhá-la à luz da lâmpada, depois de ter lhe dito: “René está apaixonado por você”, pois disse-o, e o disse imediatamente; O, que à idéia de ver este corpo tão frágil e tão delgado esfolado pelo chicote, este ventre estreito esquartejado, a boca pura uivante e a penugem das faces colada pelas lágrimas, tinha ficado transtornada de horror um mês antes, repetiu para si mesma as últimas palavras de René e sentiu-se feliz com isto.
Jacqueline tendo partido, certamente para voltar só no começo de agosto se o filme que rodava tivesse acabado, nada mais retinha O em Paris. Julho se aproximava, todos os jardins explodiam em gerânios vermelhos, todas as cortinas estavam abaixadas ao meio-dia e René suspirava por ter que ir para a Escócia. O teve, por um instante, a esperança de que a levaria. Mas, além de nunca levá-la à sua família, sabia que a cederia a Sir Stephen se esta a reclamasse. Sir Stephen declarou que no dia em que René tomasse o avião para Londres, viria buscá-la. O estava de férias. “Vamos para a casa de Anne- Marie”, disse:  “ela a espera. Não leve nenhuma mala, não terá necessidade de nada”. Não foram para o apartamento do Observatório onde, pela primeira vez, O tinha encontrado Anne-Marie, mas para uma casa baixa, no fundo de um grande jardim, nos limites da floresta de Fontainebleau. Desde aquele dia O usava a cinta com barbatanas que Anne- Marie considerava tão necessária. Todos os dias apertava-a mais, já se podia, quase, segurar sua cintura entre as duas mãos, Anne- Marie ficaria contente. Quando chegaram, eram duas horas da tarde, a casa dormia, e o cão latiu debilmente ao toque de campainha: era um grande pastor de Flandres com pêlo crespo que cheirou os joelhos de O sob o vestido. Anne-Marie encontrava-se debaixo de uma faia púrpura, no fim do gramado, que ficava na frente das janelas do seu quarto, num canto do jardim. Não se levantou. “Aqui está O”, disse Sir Stephen, “você sabe o que tem a fazer; quando estará pronta?” Anne-Marie olhou O. “Não a preveniu? Pois bem, começarei imediatamente. É preciso contar dez dias seguidos, sem dúvida. Suponho que vai querer colocar pessoalmente os anéis e a marca. Volte em quinze dias. E depois de mais quinze dias, tudo deverá ter acabado.” O quis falar, fazer uma pergunta. “Um momento, O”, disse Anne-Marie “vá para o quarto da frente, tire sua roupa ficando só com as sandálias, e volte”. O quarto estava vazio, um grande quarto branco, com cortinas em tecido violeta. O colocou sua bolsa, suas luvas e suas roupas sobre uma pequena cadeira perto de uma porta de armário. Não havia espelho. Saiu lentamente, ofuscada pelo sol, até alcançar a sombra da faia. Sir Stephen continuava de pé diante de Anne-Marie, com o cão aos seus pés. Os cabelos negros e cinzas de Anne-Marie brilhavam como se estivessem com óleo, seus olhos azuis pareciam negros. Estava vestida de branco, com um cinto envernizado à cintura e usava sandálias de verniz que permitiam ver o esmalte vermelho das unhas nos pés nus, igual ao esmalte vermelho das unhas das mãos. ”O”, disse, “fique de joelhos na frente de Sir Stephen”. O ajoelhou-se, com os braços cruzados atrás das costas e os bicos dos seios trêmulos. O cachorro ameaçou lançar-se sobre ela. “Aqui, Turco”, chamou Anne-Marie “O, consente em usar os anéis e o sinal com os quais Sir Stephen deseja que seja marcada, sem saber como lhe serão impostos?” ”Sim”, disse O. “Vou acompanhar Sir Stephen, então; fique aí”. Sir Stephen inclinou-se e segurou os seios de O enquanto Anne-Marie levantava-se de sua cadeira preguiçosa. Ainda beijou sua boca e murmurou: “Você é minha, O, é realmente minha?”, depois deixou-a para seguir Anne-Marie. O portão bateu, Anne-Marie voltava. O, com os joelhos dobrados, tinha se sentado sobre os calcanhares e colocado os braços sobre os joelhos como uma estátua do Egito.
Na casa moravam ainda três moças, cada uma tendo um quarto no primeiro andar; deram a O um pequeno quarto no térreo, vizinho ao de Anne-Marie. Anne-Marie chamou-as, gritando que descessem para o jardim. As três estavam nuas como O. Neste gineceu, cuidadosamente escondido pelos altos muros do parque e com as venezianas fechadas sobre uma ruela de terra, só estavam vestidas Anne-Marie e as criadas: uma cozinheira e duas arrumadeiras, mais velhas do que Anne-Marie, severas em suas grandes saias de alpaca negra e em seus aventais engomados. “Chama-se O” , disse Anne-Marie, que novamente tinha-se sentado. “Tragam-na para perto, para que eu a veja melhor”. Duas das moças puseram O de pé, ambas morenas, com os cabelos tão negros quanto os pêlos, os bicos dos seios longos e quase violetas. A terceira era pequena, roliça e ruiva, e sobre a pele clara de seu peito via-se uma impressionante rede de veios esverdeados. As duas moças conduziram O para perto de Anne-Marie, que mostrou com o dedo as três riscas negras que marcavam a frente das suas coxas, e que se repetiam nos quadris. “Quem a chicoteou foi Sir Stephen?”, perguntou. “Sim”, disse O “Com o quê e quando?” ”Há três dias, com a chibata.” “Durante um mês, a partir de amanhã não será mais chicoteada, mas o será hoje, para sua chegada, quando tiver acabado de examiná-la. Sir Stephen nunca chicoteou o interior de suas coxas, com as pernas totalmente abertas? Não? Não, os homens não sabem. Logo mais veremos. Mostre sua cintura. Ah! Está melhor!” Anne-Marie apertava a cintura estreita de O, para fazê-la ainda mais estreita. Depois enviou a pequena ruiva buscar uma outra cinta e mandou que a colocassem. Também era de náilon preto, tão justa e com barbatanas tão duras que parecia um cinto de couro muito alto; não comportava ligas. Uma das moças morenas laçava-a, enquanto Anne-Marie ordenava que apertasse com toda a força. “É terrível”, disse O. “Justamente”, disse Anne-Marie, “é por isso que está muito mais bonita; mas não apertava o suficiente, agora vai usá-la assim todos os dias. Diga-me agora como Sir Stephen preferia servir-se de você. Preciso saber”. Segurava O com a mão toda dentro  de seu ventre e O não conseguia responder. Duas das moças tinham-se sentado no chão e a terceira, uma morena, na ponta da cadeira de Anne-Marie. “Virem-na, vocês duas”, disse Anne-Marie, “quero ver seus quadris”. O foi virada e derrubada e as mãos das duas moças entreabriram suas nádegas. “É claro”, continuou Anne-Marie, “não precisa responder, é nas nádegas que se tem que marcá-la. Levante-se. Vamos colocar seus braceletes. Colette, vai buscar a caixa, vamos tirar a sorte para decidir quem vai chicoteá-la; traga os dados, Colette, depois iremos à sala de música.” Colette era a mais alta das duas moças morenas, a outra chamava-se Claire, e a pequena ruiva Yvone. O não tinha reparado que todas usavam, como em Roissy, um colar de couro e braceletes nos pulsos. Além disso, usavam nos tornozelos os mesmos braceletes. Quando Yvone escolheu e fixou em O os braceletes que lhe serviam, Anne-Marie estendeu a O quatro dados, pedindo-lhe que os distribuísse, sem olhar o número inscrito. O distribuiu seus dados. As três moças olhavam, cada uma o seu, e não disseram nada, esperando que Anne-Marie falasse. “Tenho dois”, disse Anne-Marie, “quem tem um?” Era Colette. “Leve O, ela é sua” Colette segurou os braços de O e juntando suas mãos atrás das costas, prendeu-as com os braceletes, empurrando-a para a frente. À soleira de uma porta-janela que se abria para  um pequena ala perpendicular à fachada principal, Yvone, que as precedia, retirou as sandálias de O. A porta-janela iluminava uma peça cujo fundo formava uma espécie de rotunda mais elevada; o teto em cúpula apenas sugerida era mantida, no começo da curva, por duas colunas estreitas com uma separação de dois metros. O estrado, quatro degraus acima, prolongava-se, entre as duas colunas, por um tablado arredondado. O chão da rotunda, assim como do resto da peça, era coberto por um tapete de feltro vermelho. As paredes eram brancas, as cortinas das janelas vermelhas e os divãs que acompanhavam o círculo da rotunda, de feltro vermelho como o tapete. Havia uma lareira na parte retangular da sala, mais larga do que profunda, na frente da lareira, um grande aparelho de rádio com eletrola, ladeado por estantes de discos. Era por isso que a chamavam a sala de música. Comunicava-se por uma porta, diretamente, com o quarto de Anne-Marie. A porta, simétrica, era uma porta de armário. Além dos divãs e do aparelho de som, não havia nenhum móvel. Enquanto Colette fazia O sentar-se na borda do estrado, que não tinha degraus no meio, os degraus encontrando-se à direita e à esquerda das colunas, as duas outras moças fechavam a porta-janela, após terem fechado as persianas ligeiramente. O percebeu, surpresa, que era uma janela dupla e Anne-Marie, que ria, disse: “É para que não a escutem gritar; as paredes são forradas de cortiça, não se ouve nada do que acontece aqui. Deite-se”.Segurou-a pelos ombros, colocou-a sobre o feltro vermelho e, depois, puxou-a um pouco para frente; as mãos de O agarravam-se na borda do estrado, onde Yvone amarrou-as a uma argola, ficando seus quadris no vazio. Anne-Marie fez com que dobrasse os joelhos no peito e, em seguida, O sentiu que suas pernas, assim dobradas, eram repentinamente esticadas e puxadas na mesma direção: foram amarradas mais alto que sua cabeça por correias que passavam pelos braceletes de seus tornozelos, às colunas entre as quais, assim elevada nesse estrado, encontrava-se exposta de tal maneira que a única coisa que dela era visível era a fenda de seu ventre e de suas nádegas, violentamente escancaradas. Anne-Marie acariciou o interior de suas coxas. “Este lugar do corpo é onde a pele é mais delicada”, disse, ”não se deve estragá-la. Vai suavemente, Colette” Colette estava de pé acima dela com um pé de cada lado da sua cintura e O via, através da ponte que formavam suas pernas morenas, as tiras do chicote que tinha na mão. Aos primeiros golpes que a queimaram sob o ventre, O gemeu. Colette passava da esquerda para a direita, parava, recomeçava. O debatia-se com todo o seu poder, parecia que as correias a rasgavam. Não queria suplicar, não queria pedir misericórdia. Mas Anne-Marie tinha resolvido levá-la até este ponto. “Mais rápido e mais forte”, disse a Colette. O obstinou-se, mas foi em vão. Um minuto mais tarde cedia aos gritos e às lágrimas, enquanto Anne-Marie acariciava seu rosto. “Mais um instante”, disse, “e depois acabou Cinco minutos apenas. São vinte e cinco. Colette, pare aos trinta, quando lhe disser”. Mas O berrava; não, por piedade, não, não podia mais, não, não podia nem mais um segundo suportar o suplício. Teve que sofrê-lo, no entanto, até o fim, e Anne-Marie sorriu-lhe quando Colette deixou o estrado. “Agradeça-me”, disse Anne-Marie, e O agradeceu-lhe. Sabia porque Anne-Marie fizera questão de mandar chicoteá-la antes de qualquer coisa. Que uma mulher fosse igualmente cruel e mais implacável do que um homem, nunca tinha duvidado. Mas O acreditava que Anne-Marie procurava menos manifestar o seu poder, do que estabelecer entre ela e O uma cumplicidade. O nunca tinha compreendido, mas tinha acabado por reconhecer, como uma verdade indiscutível e importante, a confusão contraditória e constante de seus sentimentos: amava a idéia do suplício, quando o sofria por ter traído o mundo inteiro para escapar e quando tinha terminado sentia-se feliz por tê-lo sofrido, tanto mais feliz quanto mais cruel e mais longo tivesse sido. Anne-Marie não tinha se enganado nem quanto ao consentimento nem quanto à revolta de O, e bem sabia que seu agradecimento não era irrisório. Havia, entretanto, para seu gesto uma terceira razão, que lhe explicou. Queria fazer com que cada moça que entrava em sua casa e que devia morar aí, num universo unicamente feminino, percebesse que sua condição de mulher não perderia sua importância pelo fato de que só teria contato com outras mulheres, mas que, ao contrário, tornar-se-ia ainda mais presente e mais aguda. Era por esta razão que exigia que as moças estivessem constantemente nuas; o modo como O tinha sido chicoteada, assim como  a postura em que tinha sido amarrada, não tinham outra finalidade. Hoje, era O que permaneceria o resto da tarde _ três horas ainda _ com as pernas abertas e levantadas, expostas sobre o estrado, diante do jardim. Amanhã, seria Claire, Colette ou Yvone que O, por sua vez, olharia. Era um procedimento demasiado lento e demasiado minucioso (assim como a maneira de aplicar o chicote) para que fosse empregado em Roissy, mas O veria como era eficaz. Além dos anéis e da marca que usaria ao partir, seria entregue a Sir Stephen mais aberta e mais profundamente escrava do que imaginava que seria possível.
No dia seguinte, logo após o café da manhã, Anne-Marie disse a O e a Yvone para acompanhá-la ao seu quarto. Pegou em sua secretária um pequeno cofre de couro verde que colocou sobre a cama e abriu. As duas moças sentaram-se aos seus pés. “Yvone não lhe disse nada?” , perguntou Anne-Marie a O. O fez que não com a cabeça. O que teria Yvone para lhe dizer? “Sei que Sir Stephen também não. Pois bem, estes são os anéis que quer que use.” Eram anéis de ferro fosco inoxidável, como o ferro de seu anel folheado a ouro. Suas hastes eram redondas, grossas como um lápis de cor, e eram oblongos, semelhantes às malhas das correntes grossas. Anne-Marie mostrou a O que cada um era formado de dois Us que se encaixavam um no outro. “Este é apenas o modelo de prova”, disse. “Pode-se retirá-lo. Quanto ao modelo definitivo, veja, tem uma mola interna que deve ser forçada para fazê-lo penetrar no sulco, onde se bloqueia. Uma vez colocado é impossível retirá-lo, seria necessário limar.” Cada anel tinha a largura de duas falanges do dedo mínimo que se podia passar por ele. Em cada um, como uma outra malha, ou como um aro na base de um brinco, que deve estar no mesmo plano da orelha e prolongá-la, estava suspenso um disco do mesmo metal, tão grande quanto fosse longo o aro; num dos lados havia um triskel  gravado em ouro, e no outro, nada. “No outro lado”, disse Anne-Marie, “vai ser gravado o seu nome, seu título e o nome e prenome de Sir Stephen; mais abaixo, um chicote e uma chibata entrecruzados. Yvone usa um disco análogo no seu colar. Mas você deverá usá-lo sob o ventre” “Mas...”, disse O. “Eu sei”, respondeu Anne-Marie,  “foi por isso que trouxe Yvone. Mostre o ventre, Yvone” A moça ruiva se levantou e deitou-se na cama. Anne-Marie abriu suas coxas e mostrou a O que um dos lóbulos de sua vagina encontrava-se furado no meio e na base, como por um bisturi. O anel de ferro passaria justo por aí. “Vou furá-la dentro de um momento, O”, disse Anne-Marie, “não é nada, o que demora mais é colocar os aros para juntar a epiderme de cima com a mucosa de baixo. É muito menos duro que o chicote” “Mas não vai me anestesiar?”, exclamou O tremendo.  “Nunca”, respondeu Anne-Marie, “apenas será amarrada um pouco mais forte do que ontem; isso é mais do que suficiente. Venha”..
Oito dias mais tarde Anne-Marie retirava os aros de O e passava-lhe o anel de prova. Por mais leve que fosse _ mais do que parecia, pois era oco _ pesava. O duro metal, que se podia ver claramente que entrava na carne, parecia um instrumento de suplício. Como seria quando se acrescentasse a ele o segundo anel, mais pesado? Este aparelho bárbaro se revelaria ao primeiro olhar. “É claro”, disse Anne-Marie, quando O fez esta observação. “Afinal compreendeu bem o que Sir Stephen quer? Qualquer um, em Roissy ou em qualquer outro lugar, ele mesmo ou qualquer outro, e até você mesma diante do espelho, qualquer um que levante sua saia verá imediatamente os seus anéis sob seu ventre e, se virar de costas, a marca sobre suas nádegas. Poderá um dia mandar limar os anéis, mas a marca, nunca a apagará” “Achava que se podia apagar muito bem as tatuagens”, disse Colette. (Era ela quem tinha tatuado, sobre a pele branca de Yvone, acima do triângulo do ventre, em letras azuis ornadas como as letras de um bordado, as iniciais do senhor de Yvone.) “O não será tatuada”, respondeu Anne-Marie. O olhou para Anne-Marie. Colette e Yvone calaram-se embaraçadas. Anne-Marie hesitava em falar. “Vamos, diga”, disse O. “Minha pobre criança, não ousava contar-lhe isto: será marcada com ferro. Sir Stephen mandou-os há dois dias” “Com ferro?”, gritou Yvone. “Com ferro em brasa”.
Desde o primeiro dia, O tinha compartilhado da vida da casa. O ócio era aí absoluto e deliberado, as distrações monótonas. As moças tinham liberdade para passear no jardim, ler, desenhar, jogar ou ler a sorte no baralho. Podiam dormir em seus quartos, ou deitar ao sol para se bronzear. Às vezes conversavam em grupo, ou duas a duas, por horas, às vezes ficavam sentadas sem dizer nada, aos pés de Anne-Marie. As horas das refeições eram sempre iguais, o jantar era à luz de velas, o chá se tomava no jardim e havia algo de absurdo na naturalidade das duas criadas servindo estas moças nuas, sentadas numa mesa de gala. À noite, Anne-Marie escolhia alguém para ir dormir com ela, às vezes a mesma moça durante várias noites seguidas. Acariciava-a e fazia-se acariciar por ela, em geral de madrugada, e em seguida dormia novamente, depois de tê-la mandado de volta ao seu quarto. As cortinas violetas, semicerradas, coloriam de malva o dia nascente, e Yvone dizia que Anne-Marie era tão bela e altiva no prazer que recebia, como incansável em suas exigências. Nenhuma delas tinha-a visto completamente nua. Abria ou levantava sua camisola branca de jérsei de náilon, mas não a tirava. Nem o prazer que pudesse ter tido à noite nem a escolha que tivesse feito na véspera, influenciavam a decisão do dia seguinte à tarde, que era sempre entregue à sorte. Às três horas, sob a faia púrpura onde as poltronas do jardim estavam agrupadas em volta de uma mesa redonda de pedra branca, Anne-Marie trazia o copo dos dados. Cada uma pegava o seu. Aquela que tirasse o número menor era então conduzida à sala de música e colocada sobre o estrado como O tinha sido. Restava-lhe ( menos O que se encontrava fora de questão até sua partida) indicar a mão direita ou a mão esquerda de Anne-Marie, que segurava ao acaso uma bola branca ou preta. Se fosse preta, a moça era chicoteada, se fosse branca, não. Anne-Marie nunca trapaceava, mesmo se a sorte condenasse ou poupasse a mesma moça durante vários dias. O suplício da pequena  Yvone, que soluçava e chamava seu amante, foi assim renovado por quatro dias. Suas coxas, riscadas de verde como seu peito, abriam-se sobre uma carne rosa que o grosso anel de ferro, finalmente colocado, trespassava, de forma ainda mais impressionante pois Yvone estava totalmente depilada. “Mas por quê?”, perguntou O a Yvone, “e por que o anel, se usa o disco no colar?” “Ele diz que fico mais nua quando estou depilada. O anel, acho que é para me prender”. Os olhos verdes de Yvone e seu pequeno rosto triangular faziam com que O pensasse em Jacqueline sempre que a olhava. E se Jacqueline fosse a Roissy? Um dia ou outro Jacqueline passaria por aqui, estaria aqui, derrubada neste estrado. “Não quero”, dizia O, “não quero, não farei nada para trazê-la, já disse isto mais de uma vez. Jacqueline não foi feita para ser espancada e marcada.” Mas como os golpes e os ferros combinavam com Yvone, como seu suor e seus gemidos eram doces, como era doce arrancá-los! Pois Anne-Marie, por duas vezes e até agora só para Yvone, tinha entregado o chicote de cordas a O, dizendo-lhe para bater. Na primeira vez, no primeiro minuto, tinha hesitado, ao primeiro grito de Yvone tinha recuado, mas assim que recomeçou e Yvone gritou novamente, mais forte, sentiu que ria de alegria apesar de si mesma, e que tinha que controlar-se para diminuir seus golpes e não bater com toda a força. Depois, tinha ficado perto de Yvone durante todo o tempo em que ela ficara amarrada, beijando-a de tempos em tempos. Sem dúvida, parecia-se de alguma forma com ela. Pelo menos o sentimento de Anne-Marie parecia provar isso. Seria o silêncio de O, sua docilidade que a seduziam? Mal tinham cicatrizado os ferimentos de O, e Anne-Marie dizia: “Como eu sinto não poder mandar chicoteá-la. Quando voltar... Enfim, em todo o caso vou abri-la todos os dias” E todos os dias, quando a moça que estava na sala de música era desamarrada, O a substituía até a hora do jantar. E Anne-Marie tinha razão: era verdade que durante essas duas horas não podia pensar em nada além do fato de que estava aberta, assim como no anel que pesava em seu ventre desde que o puseram, e que pesou muito mais logo que lhe foi acrescentado um segundo anel. Em nada mais pensava, do que em sua escravidão, a nas marcas da sua escravidão. Uma tarde, Claire tinha entrado com Colette, vindo do jardim, e aproximando-se de O tinha virado seus anéis. Ainda não havia inscrição. “Quando entrou em Roissy”, disse,  “foi Anne-Marie quem a fez entrar?” ”Não”, disse O “Quanto a mim, foi Anne-Marie, há dois anos. Vou voltar lá depois de amanhã.” “Mas não pertence a ninguém?”, disse O. “Claire pertence a mim”, disse Anne-Marie que chegava inesperadamente. “O seu senhor chega amanhã de manhã, O. Esta noite quero que venha dormir comigo” A curta noite de verão clareava lentamente e por volta das quatro horas da manhã o dia afogava as últimas estrelas. O, que dormia com os joelhos juntos, foi tirada do sono pela mão de Anne-Marie entre suas coxas. Mas Anne-Marie queria apenas acordá-la para que a acariciasse. Seus olhos brilhavam na penumbra e seus cabelos cinzas, mesclados de fios negros, cortados curtos e levantados pelo travesseiro, davam-lhe um aspecto de grande senhor exilado, de libertino corajoso. O roçou com os lábios o duro bico de seus seios, com sua mão penetrou no fundo do ventre. Anne-Marie entregou-se rapidamente _ mas não era para O. O prazer que fazia seus olhos se abrirem diante do dia, era um prazer anônimo e impessoal do qual O não era mais que o instrumento. Era indiferente a Anne-Marie que O admirasse seu rosto alisado e rejuvenescido, sua bela boca arquejante, era-lhe indiferente que O a escutasse gemer quando tomou entre seus dentes e seus lábios a aresta de carne escondida no sulco de seu ventre. Apenas segurou O pelos cabelos para puxá-la para si mais fortemente, e só a deixou afastar-se para lhe dizer: “Recomece” O tinha amado Jacqueline do mesmo modo. Tinha-a segurado em seus braços, entregue. Tinha-a possuído, ou pelo menos acreditava que sim. Mas a identidade dos gestos nada significa. O não possuía Anne-Marie. Ninguém possuía Anne-Marie. Anne-Marie exigia as carícias sem preocupar-se com o que sentia quem as dava, e entregava-se com uma liberdade insolente. No entanto, foi terna e doce com O, beijou-lhe a boca e os seios, e manteve-a junto de si por uma hora ainda antes de dispensá-la. Tinha retirado seus ferros. “São as últimas horas em que vai dormir sem usar ferros”, tinha-lhe dito “Os que vão ser colocados logo mais não poderão ser retirados” Passara sua mão doce e detidamente sobre as nádegas de O, depois levara-a ao cômodo em que se vestia, único da casa onde havia um espelho de três faces, sempre fechado. Abrira o espelho para que O pudesse ver-se. “É a última vez que você se vê intacta”, disse-lhe. “É bem aqui, onde é tão redonda e lisa, que serão impressas as iniciais de Sir Stephen, de um lado e do outro do sulco de suas nádegas. Quando for conduzi-la diante do espelho, na véspera de sua partida, não se reconhecerá mais. Mas Sir Stephen tem razão. Vai dormir, O” Entretanto, a angústia manteve O acordada, e quando Colette veio buscá-la, às dez horas, teve que ajudá-la a se banhar, a se pentear, e a maquilar seus lábios, pois O tremia com todos os seus membros; tinha ouvido o portão se abrir: Sir Stephen estava lá. “Vamos, venha O”, disse Yvone,  “ele a espera”.
O sol já brilhava alto no céu, nenhuma brisa movia as folhas da faia: parecia uma árvore de couro. O cão estava deitado ao pé da árvore, derrubado pelo calor e, como o sol ainda não chegara atrás do tronco principal da faia, atravessava a extremidade do galho, que era o único a fazer sombra sobre a mesa neste momento: a pedra estava salpicada de manchas claras e quentes. Sir Stephen estava de pé, imóvel, ao lado da mesa, Anne-Marie sentada ao seu lado. “Veja”, disse Anne-Marie quando Yvone trouxe O diante dele,  “os anéis podem ser colocados quando quiser, ela já está furada”. Sem responder, Sir Stephen tomou O nos braços, beijou-a na boca e, levantando-a completamente, deitou-a sobre a mesa, inclinando-se sobre ela. Em seguida beijou-a mais uma vez, acariciou seu rosto e seus cabelos e, levantando-se, disse a Anne-Marie: “Imediatamente, se quiser”. Anne-Marie pegou sobre uma poltrona o cofrezinho de couro que tinha trazido e mostrou para Sir Stephen os anéis separados que continham o nome de O e o seu. “Coloque-os”, disse Sir Stephen. Yvone levantou os joelhos de O, e O sentiu o frio do metal que Anne-Marie introduziu na sua carne. No momento de encaixar a segunda parte do anel na primeira, Anne-Marie tomou  cuidado para que o lado folheado a ouro ficasse virado para fora, junto à coxa, e o lado que continha a inscrição, para o interior. Mas a mola era tão dura que as hastes não entravam profundamente. Foi necessário mandar Yvone buscar um martelo. Levantaram O, inclinando-a com as pernas abertas na borda da lousa de pedra que servia como bigorna, tanto para apoiar a extremidade dos dois aros, como para fixá-los. Sir Stephen olhava sem dizer nada. Quando tudo terminou, agradeceu a Anne-Marie e ajudou O a ficar de pé. O percebeu então que os novos ferros eram muito mais pesados do que os que tinha usado provisoriamente nos dias anteriores. Mas estes eram definitivos. ”Suas iniciais agora, não é?”, disse Anne-Marie a Sir Stephen. Sir Stephen concordou com um sinal de cabeça, segurando pela cintura O, que cambaleava; não estava usando sua cinta negra, mas esta a tinha modelado tão bem que parecia que ia quebrar-se, de tão delgada. Seus quadris tinham se tornado mais redondos e seus seios mais pesados. Acompanhando Anne-Marie e Yvone, Sir Stephen praticamente carregava O para a sala de música, onde se encontravam Colette e Claire, sentadas ao pé do estrado. À sua entrada, se levantaram. Sobre o estrado havia um fogareiro redondo só com uma boca. Anne-Marie pegou as correias no armário e fez amarrarem O estreitamente pela cintura e pelos joelhos, com o ventre contra uma das colunas. Também amarraram suas mãos e seus pés. Perdida no seu terror, sentiu a mão de Anne-Marie sobre suas nádegas, indicando onde se devia colocar os ferros, ouviu o sibilo de uma chama e, num silêncio total, a janela que se fechava. Não podia suportar. Uma única dor abominável a atravessou e a jogou em suas correias, uivante e enrijecida; nunca soube quem tinha afundado os dois ferros em brasa ao mesmo tempo na carne de suas nádegas, nem de quem era a voz que contava lentamente até cinco, nem pela ordem de quem tinham sido retirados. Quando a desamarraram, caiu nos braços de Anne-Marie, e teve tempo de vislumbrar antes que tudo rodasse e se escurecesse ao seu redor, e que finalmente todo  sentimento a abandonasse entre duas ondas noturnas, o rosto lívido de Sir Stephen.
Sir Stephen levou O para Paris dez dias antes do fim de julho. Os ferros que furavam o lóbulo esquerdo sob o seu ventre e que diziam com todas as letras que era propriedade de Sir Stephen, desciam até um teço das coxas, e a cada passo balançavam entre suas pernas como um batente de relógio, o disco gravado sendo mais pesado e mais longo do que o anel onde estava pendurado. As marcas impressas pelo ferro em brasa, com três dedos de altura e com a metade da sua altura de largura, afundavam-se na carne como uma goiva, com cerca de um centímetro de profundidade. Bastava roçá-las de leve, para percebê-las sob o dedo. Destes ferros e desta marca, O sentia um orgulho insensato. Se Jacqueline estivesse aí, em vez de tentar esconder-lhe que os usava como tinha feito com as marcas dos golpes de chibata que Sir Stephen tinha-lhe infligido nos últimos dias antes de sua partida, teria corrido à sua procura para mostrá-los. Mas Jacqueline só voltaria dentro de oito dias. René também não estava. Durante esses oitos dias, a pedido de Sir Stephen, O mandou fazer alguns vestidos para o verão e alguns vestidos para a noite, muito leves. Foram-lhe permitidos apenas dois modelos com algumas variantes: um, com um fecho ecler que se abria e fechava de cima a baixo (O já possuía alguns semelhantes) e o outro composto de uma saia em leque que se arregaçava com um gesto, mas sempre com um cinturão que subia até os seios, e usada com um bolero fechado no pescoço. Bastava tirar o bolero para que os ombros e os seios ficassem nus, e mesmo sem tirar o bolero, bastava abri-lo quando se desejasse ver os seios. Roupa de banho era impossível, O não podia usá-la: os ferros de seu ventre teriam ultrapassado o maiô. Sir Stephen disse-lhe que neste verão, quando fosse se banhar, iria nua. O tinha percebido que a todo momento, quando se encontrava perto, mesmo não a desejando e por assim dizer maquinalmente, ele gostava de segurá-la sob o ventre, puxando seus pêlos, abrindo-a e penetrando-a com a mão por muito tempo. O prazer que ela própria sentia quando possuía Jacqueline úmida e ardente envolvendo sua mão, era testemunho e garantia do prazer de Sir Stephen. Compreendia que não quisesse que isso se tornasse menos fácil.
Com os twills listrados ou de bolinhas, em tonalidades cinza e branco, e azul-marinho e branco que escolheu, com a saia plissada e o pequeno bolero justo e firme, ou com roupas mais severas em cloqué de náilon preto, apenas ligeiramente maquilada, sem chapéu e com os cabelos soltos, O parecia uma jovem bem-comportada. Por toda a parte em que Sir Stephen a levava, tomavam-na por sua filha ou por sua sobrinha, tanto mais que, enquanto ele a tratava com intimidade, continuava a tratá-lo respeitosamente. Sozinhos em Paris, passeando pelas ruas a olhar  as vitrinas, ou ao longo dos cais onde as calçadas eram poeirentas, pois estava muito seco, viam, sem espanto, os passantes sorrirem para eles como se faz para as pessoas felizes. Às vezes Sir Stephen levava-a para o canto de um portão ou sob o arco de um prédio, sempre algum lugar escuro, de onde subia um odor de adega, e a beijava dizendo-lhe que a amava. O prendia seus saltos altos no degrau onde em geral o portão é recortado. Percebia-se um fundo de quintal onde as roupas de baixo secavam nas janelas. Encostada a um balcão, uma moça loura olhava-os fixamente, um gato passava entre suas pernas. Passearam assim no Gobelins, em Saint-Marcel, na rua Mouffetard, no Temple, na Bastille. Uma vez Sir Stephen inesperadamente entrou com O num miserável hotel de passagem, onde o proprietário primeiro quis que preenchessem as fichas, mas logo disse que, se fosse apenas por uma hora, não era necessário. O papel do quarto era azul com enorme peônias douradas e a janela dava sobre um poço de onde subia o cheiro das latas de lixo. Por fraca que fosse a lâmpada à cabeceira da cama, podia-se ver pó-de-arroz derrubado e alguns grampos sobre o mármore da  lareira. No teto, acima da cama, havia um grande espelho.
Uma só vez Sir Stephen convidou, para almoçar com O, dois de seus compatriotas que estavam de passagem. Veio buscá-la no cais de Béthune uma hora antes que estivesse pronta, em lugar de fazê-la vir à sua casa. O já tinha tomado banho, mas ainda não estava penteada, maquilada nem vestida. Viu com surpresa que Sir Stephen trazia na mão uma sacola que se usa nos clubes de golfe. Mas sua surpresa não durou muito: Sir Stephen disse-lhe para abrir a sacola. Esta continha diversas chibatas de couro: duas em couro vermelho mais ou menos grossas, duas muito finas e longas em couro negro, um chicote flagelante com correias de couro verde, trançadas e formando um cacho nas extremidades, um outro feito de cordinhas com nós, um chicote para cachorro que consistia numa única correia grossa de couro e cujo cabo era de couro trançado e, por fim, braceletes e correias de couro como os de Roissy. O arrumou tudo, lado a lado, sobre a cama aberta. Por maior que fosse o hábito ou a resolução que tivesse, tremia; Sir Stephen tomou-a em seus braços. “O que prefere, O?”, disse-lhe. Mas ela mal podia falar, e já sentia, antecipadamente, o suor correndo sob suas axilas. “O que prefere?”, repetiu. “Bom”, disse diante do seu silêncio, “primeiro vai me ajudar”. Pediu-lhe pregos, e tendo se decidido como dispô-las para fazer uma decoração com os chicotes e as chibatas entrecruzadas, mostrou a O que à direita de sua penteadeira, na frente da cama, um painel de madeira entre a penteadeira  e a lareira estava prestes a recebê-los. Fixou os pregos. Nas extremidades dos cabos dos chicotes e das chibatas, havia argolas que se podia pendurar nos ganchos dos pregos X, o que permitia tirar e recolocar facilmente cada chicote, com os braceletes e as cordas enroladas. O teria assim, diante de sua cama, a panóplia completa dos seus instrumentos de suplício. Era uma bonita panóplia, tão harmoniosa quanto a roda e as tenazes nos quadros que representam Santa Catarina mártir, ou quanto o martelo e os pregos, a coroa de espinhos, a lança e as varas nos quadros da Paixão. Quando Jacqueline voltasse ... mas tratava-se justamente de Jacqueline...
Precisava responder à pergunta de Sir Stephen; como não conseguia, ele próprio escolheu o chicote para cães.
No La Pérousse, numa minúscula sala privada do segundo andar, onde personagens em estilo Watteau, em cores claras um pouco apagadas, sobre as paredes escuras, lembravam atores de teatro de bonecas, O foi instalada sozinha num divã, com os dois amigos de Sir Stephen, um à sua direita  e um à sua esquerda, cada um em sua poltrona, e Sir Stephen à sua frente. Já tinha visto um dos homens em Roissy, mas não se lembrava de que a tivesse possuído. O outro era um rapaz alto, ruivo, com os olhos cinzentos, que certamente ainda não tinha vinte e cinco anos. Sir Stephen disse-lhes em duas palavras por que tinha convidado O e o que ela era. Mais uma vez O se surpreendeu, ao escutá-lo, com a brutalidade de sua linguagem. Mas também, como queria que fosse qualificada, senão como prostituta, uma moça que consentia, diante de três homens, sem contar os garçons do restaurante que ainda entravam e saíam, o serviço não tendo terminado, em abrir seu vestido para mostrar os seios, cujos bicos estavam pintados e dos quais via-se também, por dois sulcos violetas através da pele branca, que tinham sido chicoteados? A refeição foi longa, e os dois ingleses beberam muito. Durante o café, quando foram trazidos os licores, Sir Stephen empurrou a mesa para a parede oposta, e depois de ter levantado a saia de O para que seus amigos vissem como estava marcada e ferrada, deixou-a com eles. O homem que tinha encontrado em Roissy logo apoderou-se dela, exigindo imediatamente, sem deixar sua poltrona nem tocá-la sequer com a ponta dos dedos, que se ajoelhasse diante dele, que retirasse seu sexo e o acariciasse até chegar ao gozo em sua boca. Depois, fazendo ainda com que o deixasse novamente composto, partiu. Mas o rapaz ruivo, que a submissão de O, seus ferros, e as lacerações que tinha visto em seu corpo transtornavam, em vez de atirar-se sobre ela como O esperava, tomou-a pela mão, desceu com ela a escada sem um olhar para os sorrisos dos garçons e, tendo chamado um táxi, levou-a para seu quarto de hotel. Só deixou-a partir tarde da noite, depois de ter possuído com frenesi seu ventre e suas nádegas, deixando-a contundida, tão rígido e espesso era, e enlouquecido como estava pela súbita liberdade que pela primeira vez experimentava de penetrar uma mulher duplamente, assim como fazer-se beijar por ela do modo como acabava de ver que se podia exigir dela ( e que nunca tinha ousado pedir a ninguém). No dia seguinte, às duas horas, quando O chegou na casa de Sir Stephen, que a tinha mandado chamar, encontrou-o com o rosto sério em um aspecto envelhecido. “Eric ficou loucamente apaixonado por você, O”, disse-lhe. “Veio esta manhã me suplicar que devolvesse sua liberdade, e dizer-me que queria se casar com você. Quer salvá-la. Você vê o que faço com você sendo minha O; e sendo minha, não é livre para recusar, mas continua sendo livre, você sabe, para recusar ser minha, Foi o que lhe eu disse. Deverá voltar às três horas” O pôs-se a rir. “Não acha que é um pouco tarde?”, perguntou. “Vocês são loucos, os dois. Se Eric não tivesse vindo esta manhã, que faria de mim esta tarde? Iríamos passear, simplesmente? Então vamos passear; ou talvez não teria me chamado? Nesse caso, vou embora...” “Não”, continuou Sir Stephen, “tê-la-ia chamado, O, mas não para passear. Eu queria...” “Diga”. “Venha, será mais simples”  Levantou-se  e abriu uma porta na parede diante da lareira, simétrica à que se usava para entrar no seu escritório. O sempre achou que era uma porta de armário condenada. Viu uma cabine muito pequena, recentemente pintada e forrada de seda vermelho-escura, cuja metade era ocupada por um estrado arredondado, flanqueado por duas colunas, idêntico ao estrado da sala de música de Samois. “As paredes e o teto estão forrados de cortiça, não é?”, disse O “e a porta acolchoada; e fez instalar uma janela dupla?” Sir Stephen fez que sim com a cabeça. “Mas desde quando?” “Por que esperei até hoje? Porque esperei para fazê-la passar entre outras mãos além das minhas. E agora vou puni-la por isto. Nunca a puni, O”. “Mas eu sou sua”, disse O,  “castigue-me. Quando Eric chegar...”
Uma hora mais tarde, levado à presença de O, grotescamente aberta entre as duas colunas, o rapaz empalideceu, balbuciou e desapareceu. O achava que nunca mais ia revê-lo. Reencontrou-o, porém, em Roissy, no fim do mês de setembro, quando fez com que a entregassem a ele por três dias seguidos e maltratou-a selvagemente.



CAPÍTULO 4 - A CORUJA

Que O tivesse podido hesitar em falar com Jacqueline sobre o que René chamava com justiça sua verdadeira condição, era o que não compreendia mais. Anne-Marie bem lhe dissera que estaria mudada quando saísse de sua casa. Nunca teria pensado que pudesse ser a esse ponto. Jacqueline tendo voltado, mais radiosa e fresca do que nunca, pareceu-lhe natural de agora em diante não se esconder para tomar banho ou vestir-se, mais do que quando estava sozinha. No entanto, Jacqueline tinha tão pouco interesse pelo que não era ela mesma que, dois dias depois de sua chegada, tendo entrado por acaso no banheiro no momento em que O saía do banho, foi necessário que esta fizesse tinir os ferros de seu ventre contra o esmalte da banheira, para que o barulho insólito atraísse sua atenção. Virou a cabeça e viu ao mesmo tempo o disco pendurado entre as pernas de  O, e as marcas que riscavam suas coxas e seus seios. “O que você tem?”, disse. “Foi Sir Stephen”, respondeu O. E acrescentou como uma coisa natural: “René tinha me dado a ele, e ele me fez ferrar com seu nome. Olhe”. E, enxugando-se com seu roupão de banho, aproximou-se de Jacqueline que, surpreendida, sentara-se no banquinho laqueado, perto o suficiente para que pudesse segurar o disco na mão e ler a inscrição: depois, deixando cair seu roupão, O virou-se, mostrou com a mão o S e o H que se afundavam em suas nádegas e disse: “Também me fez marcar com suas iniciais. O resto são golpes de chibata. Ele próprio me chicoteia, mas também manda sua criada negra me chicotear”. Jacqueline olhava O sem poder pronunciar uma palavra. O pôs-se a rir e quis beijá-la. Mas Jacqueline repeliu-a apavorada e refugiou-se no quarto. O terminou tranqüilamente de se secar, perfumou-se, escovou os cabelos. Pôs sua cinta-liga, suas meias, seus chinelos, e quando por sua vez abriu a porta, encontrou no espelho o olhar de Jacqueline que se penteava diante da penteadeira, sem ter consciência do que fazia. “Aperte minha cinta”, disse. “Você representa bem o papel da admirada. René está apaixonado por você; então, não lhe disse nada?” “Não compreendo”, disse Jacqueline. E confessando imediatamente o que mais a surpreendia: “Você parece estar orgulhosa, não compreendo”. “Quando René a levar a Roissy compreenderá. Já começou a dormir com ele?” Um fluxo de sangue invadiu o rosto de Jacqueline que fez não com a cabeça com tanta má-fé que O mais uma vez deu uma risada. ”Está mentindo, minha querida, mas você é boba. Tem todo o direito de dormir com ele. E isto não é motivo para me repelir. Deixe-me acariciá-la e contarei sobre Roissy”. Jacqueline temera uma violenta cena de ciúmes de O, e cedeu por alívio, por curiosidade, para obter de O explicações, ou simplesmente porque amava a paciência, a lentidão e a paixão com que O a acariciava? Cedeu. “Conte”, disse depois a O. “Sim”, disse O. “Mas antes beije-me os bicos dos seios. Já está na hora de se habituar, se quiser servir em algo a René.” Jacqueline obedeceu, e tão bem, que fez O gemer. “Conte”, disse mais uma vez. 
O relato de O, por mais fiel e claro que fosse, e apesar da prova material que ela própria constituía, pareceu delirante a Jacqueline. “Vai voltar lá em setembro?”, disse. “Quando voltarmos do Midi”, disse O. “Eu a levarei, ou René a levará”. “De ver eu gostaria”, continuou Jacqueline,  “mas só de ver.” “Estou certa de que é possível”, disse O, estava convencida do contrário, mas pensando que, se pudesse, ela, persuadir Jacqueline a ultrapassar as grades de Roissy, Sir Stephen ser-lhe-ia grato _ e que logo haveria ****************************************muitos criados, correntes e chicotes para ensinarem a Jacqueline a aquiescência. Já sabia que na vila que Sir Stephen tinha alugado perto de Cannes, onde deveria passar o mês de agosto com René, Jacqueline e ela, além da irmã menor de Jacqueline, que esta tinha pedido permissão para levar _ não que fizesse questão, mas porque sua mãe a atormentara para fazer com que O consentisse_, sabia que o quarto que ocuparia, onde Jacqueline não poderia recusar ir pelo menos fazer a sesta com ela quando René não estivesse, estaria separado do quarto de Sir Stephen por uma parede que parecia compacta mas que não o era, e cuja decoração, dando a ilusão ótica de uma clarabóia sobre uma treliça, permitia, retirando-se um painel, ver e escutar tão bem como se estivesse de pé ao lado da cama. Jacqueline estaria entregue aos olhares de Sir Stephen quando O a acariciasse, e saberia disso tarde demais para se defender. Era-lhe doce pensar que entregaria Jacqueline por traição, pois sentia-se insultada ao ver que Jacqueline desprezava esta condição de escrava marcada e chicoteada da qual estava orgulhosa.
O nunca tinha ido ao Midi. O céu azul e igual, o mar que mal se movia, os pinheiros imóveis sob o sol alto, tudo lhe pareceu mineral e hostil. “Não são árvores de verdade”, dizia tristemente diante dos bosques perfumados repletos de cistos e de medronheiros, onde todas as pedras e até os liquens eram quentes sob a mão. “O mar não tem cheiro de mar”, dizia ainda. Recriminava-o por lançar apenas algas ruins, raras e amareladas que pareciam excrementos, por ser excessivamente azul, por lamber a praia sempre no mesmo lugar. Mas, no jardim da vila, que era uma velha fazenda reformada, encontrava-se longe do mar. Grandes muros à direita e à esquerda protegiam dos vizinhos; a ala dos empregados dava para o pátio da entrada, na outra fachada, e a fachada que dava para o jardim, onde o quarto de O abria-se inteiro sobre um terraço no primeiro andar, estava exposta ao leste. O cimo de grandes loureiros negros alcançava as telhas ocas acavaladas que serviam de parapeito ao terraço; um ripado de bambu protegia-o do sol do meio-dia e o ladrilho vermelho que cobria o chão era o mesmo que o do quarto. As paredes do quarto eram caiadas de branco, com exceção da parede que separava o quarto de O do de Sir Stephen, e era a parede de uma grande alcova delimitada por um arco e separada do resto do quarto por uma espécie de barreira semelhante à rampa de uma escada, com balaústres de madeira torneada. Grossos tapetes brancos de algodão cobriam os ladrilhos, as cortinas eram de tecido amarelo e branco. Havia duas poltronas cobertas com o mesmo tecido, e colchões cambojianos azuis, dobrados de três vezes como único mobiliário, uma cômoda bojuda em nogueira, muito bonita, da época Regência, e uma mesa rústica, comprida e estreita, em madeira clara, encerada como um espelho. O guardava suas roupas num roupeiro. A parte superior da cômoda servia-lhe de penteadeira. Tinham acomodado a pequena Natalie bem perto do quarto de O, e pela manhã, quando sabia que O tomava seu banho de sol no terraço, Natalie vinha encontrá-la e estender-se ao seu lado. Era uma menina muito branca, roliça e no entanto delicada, com os olhos puxados como os de sua irmã, mas negros e brilhantes, o que lhe dava um aspecto chinês. Seus cabelos negros eram cortados retos acima da nuca. Tinha pequenos seios firmes e vibrantes e ancas infantis que começavam a se arredondar. Também tinha visto O de surpresa, quando entrou correndo no terraço onde pensava encontrar sua irmã e onde O se encontrava sozinha, deitada de bruços sobre uma esteira cambojiana. Mas o que revoltara Jacqueline, transtornou-a de desejo e inveja; interrogou sua irmã. As respostas que Jacqueline achou que iam revoltá-la ao contar-lhe o que a própria O tinha-lhe contado não mudaram em nada o sentimento de Natalie, pelo contrário. Tinha se apaixonado por O. Conseguiu calar-se mais de uma semana, mas, depois, no fim de uma tarde de domingo, deu um jeito para encontra-se a sós com O.
Fizera menos calor do que de costume. René, que tinha nadado durante uma parte da manhã, dormia sobre o divã de um cômodo fresco no andar térreo. Jacqueline, irritada por ver que ele preferia dormir, tinha ido encontrar O na sua alcova. O mar e o sol já a tinham bronzeado bastante: seus cabelos, suas sobrancelhas, seus cílios, seus pêlos sob o ventre e em suas axilas pareciam pulverizados de prata, e como não usava nenhuma pintura sua boca era do mesmo rosa que a carne rosa no fundo de seu ventre. Para que Sir Stephen _ cuja presença invisível O achava que, no lugar de Jacqueline, teria pressentido, adivinhado, percebido _ pudesse vê-la em detalhe, O teve o cuidado, por diversas vezes, de dobrar suas pernas mantendo-as abertas em plena luz: tinha acendido a lâmpada da cabeceira. As venezianas estavam puxadas, o quarto quase escuro apesar dos raios de claridade que passavam através das madeiras mal ajustadas. Jacqueline gemeu por mais de uma hora sob as carícias de O e por fim, com os seios levantados, os braços jogados para trás, agarrando-se com as duas mãos às barras de madeira que formavam a cabeceira da cama à italiana, começou a gritar quando O, mantendo afastados os lóbulos orlados de pêlos pálidos, pôs-se a morder lentamente a aresta de carne onde se reuniam, entre as coxas, os finos e delicados pequenos lábios. O sentiu-a endurecida e ardente sob sua língua, e a fez gritar sem trégua, até quando se distendeu de uma só vez, com as juntas quebradas, molhada de prazer. Mandou-a depois para seu quarto, onde dormiu. Encontrava-se desperta e pronta quando, às cinco horas, René veio buscá-la para irem ao mar com Natalie, num pequeno barco a vela, como tinham se habituado a fazer; no final da tarde havia alguma brisa. “Onde está Natalie?” , disse René. Natalie não estava em seu quarto, nem na casa. Procuraram-na no jardim. René foi até o pequeno bosque de carvalhos que se seguia ao jardim; ninguém respondeu. “Talvez já esteja no ancoradouro”, disse René, “ou no barco” Partiram sem chamar mais. Foi então que O, estendida em sua cambojiana, no terraço, avistou, através das telhas da balaustrada, Natalie que corria para a casa. Levantou-se, vestiu seu roupão _ estava nua por causa do calor _ e amarrava o cinturão quando Natalie entrou como uma fúria e jogou-se sobre ela. “Ela partiu, enfim partiu”, gritava “Eu a escutei, O, eu escutei vocês duas, escutei na porta. Você a beija, você a acaricia. Por que não me acaricia, por que não me beija? É por que eu sou escura e não sou bonita? Ela não a ama, O, e eu a amo”. E explodiu em soluços. “Vamos, calma” , disse O. Levou a menina para uma poltrona, pegou um grande lenço na sua cômoda (era um lenço de Sir Stephen) e, quando os soluços de Natalie se acalmaram um pouco, enxugou seu rosto. Natalie pediu-lhe perdão, beijando suas mãos. “Mesmo se não quiser me beijar, O, deixe-me ficar perto de você. Deixe-me ficar perto de você todo o tempo. Se não gosta de me beijar, mas se lhe diverte me bater, pode me bater, mas não me mande embora” “Cale-se, Natalie, você não sabe o que está dizendo”, murmurou O baixinho. A pequena, muito baixo também e escorregando para os joelhos de O, que abraçou, respondeu: “Sei sim, sei muito bem. Numa dessas manhãs eu a vi no terraço. Vi as iniciais e vi que você tem grandes marcas azuladas. E Jacqueline me contou.” “Contou o quê?”  “Onde você esteve e o que lhe fizeram.” “Ela falou de Roissy ?”  “E também falou que você esteve lá, que você era...” “Que eu era?” “Que você usa anéis de ferro” ”Sim”, disse O, “e depois?” “E depois que Sir Stephen a chicoteia todos os dias” “Sim”, disse ainda O, “e agora ele já vai chegar. Vai embora, Natalie”. Natalie, sem se mexer, levantou a cabeça para O, e O encontrou seu olhar cheio de adoração “Ensine-me, O, eu lhe suplico, queria ser como você. Prometa me levar quando voltar lá onde  Jacqueline me contou.” “Você é muito criança”, disse O. “Não, não sou muito criança, tenho mais de quinze anos”, gritou, furiosa, “não sou criança demais, pergunte a Sir Stephen”, repetiu, pois ele entrava.
Natalie conseguiu permissão para ficar perto de O e a promessa de que seria levada a Roissy. Mas Sir Stephen proibiu a O ensinar-lhe qualquer carícia, beijá-la, mesmo que na boca, e deixar-se beijar por ela. Achava que deveria chegar em Roissy sem ter sido tocada por mãos ou lábios de quem quer que fosse. Por ouro lado exigiu, já que não queria deixar O, que não a deixasse em nenhum instante, que visse tanto O acariciar Jacqueline, como acariciar a ele próprio e entregar-se a ele, assim como ser chicoteada por ele ou pelas varas da velha Norah. Os beijos com que O cobria sua irmã, a boca de O sobre a boca de sua irmã, fizeram Natalie tremer de ciúmes e de ódio. Mas encolhida no tapete da alcova aos pés da cama de O como a pequena Dinazarde ao pé da cama de Sherazade, viu todas as vezes O, amarrada à balaustrada de madeira, contorce-se sob a chibata, O de joelhos receber humildemente na boca o espesso sexo endurecido de Sir Stephen, O prosternada oferecer-lhe o caminho de suas nádegas, abrindo-as com as próprias mãos, sem outros sentimentos que a admiração, a impaciência e o desejo.
Talvez O tivesse contado demais com a indiferença e ao mesmo tempo com a sensualidade de Jacqueline, talvez Jacqueline tenha considerado ingenuamente que fosse perigoso para ela, com relação à René, entregar-se tanto a O, o certo é que parou de repente. Nessa mesma época, parecia que mantinha René, com quem passava quase todas as suas noites e os dias, como à distância. Nunca tinha tido com ele a atitude de uma apaixonada. Olhava-o friamente e, quando lhe sorria, o sorriso não ia até os olhos. Admitindo-se que se entregasse a ele com tanto abandono como se entregava a O, o que era improvável, O não podia impedir-se de acreditar que este abandono não comprometia muito Jacqueline, enquanto se podia perceber que René estava perdido de desejo diante dela, paralisado por um amor que até então desconhecia, um amor inquieto, inseguro de retorno, e que teme desagradar. Vivia e dormia na mesma casa que Sir Stephen, na mesma casa que O, almoçava, jantava, saía e passeava com Sir Stephen, com O, falava com eles: mas não os via e não os ouvia. Via, ouvia e falava, através deles, além deles; e sem cessar, num esforço mudo e estafante, semelhante aos esforços que se fazem nos sonhos para saltar no trem que parte, para se segurar no parapeito da ponte que desmorona, tentava atingir a razão de ser, a verdade de Jacqueline que deveria existir no interior de sua pele dourada, como sob a porcelana, o mecanismo que faz as bonecas chorarem. “Chegou afinal”, pensava O,  “chegou afinal o dia que tanto temia, quando seria para René uma sombra numa vida passada. E nem sequer estou triste, só me dá pena, e posso vê-lo todos os dias sem ficar ofendida por não me desejar mais, sem amargura, sem saudades. No entanto, há apenas algumas semanas corria a suplicar-lhe que me dissesse que me amava. É isso o amor? Tão leve, tão facilmente consolado? Nem mesmo consolado: sou feliz. Bastava então que me tivesse dado a Sir Stephen para que me desligasse dele, e para que nascesse entre novos braços, tão facilmente para um novo amor?”  Mas também, o que era René, em comparação com Sir Stephen? Corda de feno, amarra de palha, bala de cortiça, isso que simbolizavam os laços verdadeiros com os quais a tinha ligado para tão depressa renunciar. Mas que repouso, que delícia o anel de ferro que fura a carne e que pesa para sempre, a marca que nunca se apagará, a mão de um senhor que a deita numa cama de rocha, o amor de um senhor que sabe apropriar-se sem piedade daquilo que ama. E O pensava que, afinal, só tinha amado René para aprender o amor e saber dar-se melhor, escrava e feliz, a Sir Stephen. Mas ao ver René, que com ela tinha sido tão livre _ e tinha-o amado por sua liberdade _ caminhar como entrevado, como se tivesse as pernas presas na água e nos caniços de um lago que parece imóvel, mas cuja corrente passa nas camadas profundas, provocava o ódio de O contra Jacqueline. René o teria adivinhado? O, imprudente, tê-lo-ia deixado perceber? Cometeu um erro. Uma tarde, fora sozinha com Jacqueline ao cabeleireiro e depois foram tomar sorvetes no terraço da Reserva. Jacqueline, toda de preto em suas calças de corsário e com uma malha de linho, apagava ao seu redor até o brilho das crianças, assim tão lisa e dourada, tão dura e clara em pleno sol, tão insolente, tão fechada. Disse a O que tinha um encontro com o diretor com quem tinha filmado em Paris, para filmarem uns exteriores, provavelmente na montanha atrás de Siant-Paul-de-Vence. O rapaz estava lá, direto e resoluto. Não tinha necessidade de falar. Que estava apaixonado por Jacqueline, era óbvio. Bastava ver como a olhava. O que havia de surpreendente? O que surpreendia mais era Jacqueline. Semi-estendida numa das grandes poltronas basculantes, Jacqueline escutava, enquanto ele lhe falava de datas a fixar, de encontros a marcar e da dificuldade de conseguir dinheiro suficiente para terminar o filme iniciado. Tratava-a com intimidade e Jacqueline respondia fazendo sim ou não com a cabeça, semicerrando os olhos. O estava sentada diante dela, o rapaz entre as duas. Não teve dificuldade em observar que Jacqueline, com seus olhos baixos, e ao abrigo de suas pálpebras imóveis, espreitava o desejo do rapaz como sempre fazia achando que ninguém percebia. Mas o mais estranho foi vê-la perturbada, com as mãos pendentes, sem uma sombra de sorriso, grave, e como O nunca a tinha visto diante de René. Bastou um sorriso que durou apenas um segundo em seus lábios quando O inclinou-se para colocar na mesa seu copo de água gelada, e quando seus olhares se cruzaram, para O compreender que Jacqueline percebia que tinha sido decifrada. Mas não se perturbou e foi O quem enrubesceu. “Está com muito calor?” , perguntou Jacqueline. “Já vamos em cinco minutos. Aliás, você fica muito bem assim.” Depois sorriu novamente, ao levantar os olhos para o seu interlocutor. Mas desta vez com um tão terno abandono, que parecia impossível que ele não saltasse para beijá-la. Mas não. Era jovem demais para saber o impudor que existe na imobilidade e no silêncio. Deixou Jacqueline levantar-se, estender-lhe a mão, dizer-lhe adeus. Ela telefonaria. Disse então adeus à sombra que para ele era O, e de pé na calçada, ficou olhando o Buick negro afastar-se na avenida entre as casas que o sol queimava e o mar excessivamente azul. As palmeiras pareciam recortadas a serrote, os passantes, manequins de cera mal fundida, animados por um mecanismo absurdo. “Ele a agrada tanto assim?”, disse O a Jacqueline quando o carro já saía da cidade e pegava a estrada da alta cornija. “Isso lhe interessa?”, respondeu Jacqueline. “Interessa a René”, respondeu O.”O que também interessa a René e a Sir Stephen, se compreendi bem, assim como a alguns outros”, continuou Jacqueline, “é que está muito mal sentada. Vai amassar seu vestido”. O não se mexeu. “E pensei”, disse ainda Jacqueline, “que nunca devia cruzar os joelhos?” Mas O não escutava mais. Que lhe importavam as ameaças de Jacqueline? Se Jacqueline ameaçava denunciar O por este erro venial, imaginava assim impedir O de denunciá-la a René? Não era vontade que faltava a O. Mas René não suportaria saber que Jacqueline lhe mentia, nem que desejaria dispor de si mesma sem ele. Como fazer Jacqueline acreditar que se O se calasse seria para não ver René perder a cara, empalidecer por outra que não fosse ela, e talvez ter a fraqueza de não puni-la? Que seria, mais ainda, pelo medo de ver a cólera de René voltar-se contra ela própria, mensageira de más notícias, denunciadora? Como dizer a Jacqueline que se calaria, sem dar a impressão de fazer com ela um acordo, uma troca? Pois Jacqueline imaginava que O tinha um medo terrível, um medo que a gelava, do que lhe seria infligido se falasse.
Quando desceram do carro, no pátio da velha casa, não tinham mais se dirigido a palavra. Jacqueline, sem olhar O, colheu um ramo de gerânios brancos na cerca da fachada. O acompanhava-a tão de perto que pôde sentir o odor forte e sutil da folha amassada entre suas mãos. Pensaria poder assim disfarçar o odor de seu próprio suor que ajustava mais ainda e tornava mais negro sob as axilas o linho da sua malha? René estava sozinho na grande sala de ladrilhos vermelhos caiada de branco. “Vocês estão atrasadas”, disse, quando entraram. “Sir Stephen a espera”, acrescentou, dirigindo-se a O, “precisa de você e não está muito contente”. Jacqueline explodiu de rir, O olhou-a e corou. “Poderiam ter encontrado um outro momento”  , disse René, que se enganou sobre o riso de Jacqueline e a perturbação de O. “Não é isso”, disse Jacqueline,  “mas você não sabe, René; sua bela obediente não é tão obediente quando você não está. Veja seu vestido, como está amassado”. O estava de pé no meio da sala diante de René. Ele lhe disse para virar-se, mas não pôde se mexer. “Também cruza os joelhos”, disse ainda Jacqueline, “mas isto com certeza você não vê. Nem que namora os rapazes”. “Não é verdade”, gritou O, “é você”, e pulou sobre Jacqueline. René segurou-a quando ia bater em Jacqueline, ela debatia-se entre suas mãos pelo prazer de se sentir mais fraca e de estar à sua mercê, quando, levantando a cabeça, avistou Sir Stephen que a olhava, na soleira da porta. Jacqueline tinha se jogado no divã, com o rosto pequeno endurecido pelo medo e pela cólera e O sentiu que René, por mais ocupado que estivesse em mantê-la imóvel, só tinha atenção para Jacqueline. Parou de resistir, e desesperada por estar em erro sob os próprios olhos de Sir Stephen, repetiu ainda, desta vez em voz baixa: “Não é verdade, juro que não é verdade”. Sem uma palavra, e sem um olhar para Jacqueline, Sir Stephen fez sinal a René para largar O, e a O para passar. Mas, do outro lado da porta, O, imediatamente prensada contra a parede, tomada pelo ventre e pelos seios, com a boca entreaberta pela língua de Sir Stephen, gemeu de felicidade e de libertação. O bico de seus seios enrijecia-se sob a mão de Sir Stephen, que com a outra mão penetrava seu ventre tão rudemente que achou que ia desmaiar. Ousaria um dia dizer-lhe que nenhum prazer, nenhuma alegria, nenhuma fantasia poderia se aproximar da felicidade que experimentava com a liberdade com a qual a usava, com a idéia de que não tinha que ter nenhum cuidado, nenhum limite na maneira como podia procurar seu prazer no seu corpo? A certeza que tinha de que, quando a tocava, fosse para acariciá-la ou bater-lhe, ou de que, quando lhe dava alguma ordem, era unicamente porque tinha esse desejo, a certeza de que só levava em conta seu próprio desejo, causava-lhe tal satisfação, que cada vez que tinha a prova disso, e muitas vezes mesmo quando só pensava nisso, uma chapa de fogo, uma couraça ardente que ia dos ombros aos joelhos, abatia-se sobre ela. Enquanto estava ali, de pé contra a parede, com os olhos fechados, murmurando “eu o amo” quando o fôlego não lhe faltava, as mãos de Sir Stephen, frescas, entretanto, como uma fonte sobre este fogo que subia e descia nela, faziam-na arder mais ainda. Deixou-a docemente, baixando a saia sobre suas coxas úmidas, fechando seu bolero sobre os seios levantados. “Vem, O, preciso de você”. Então O, abrindo os olhos, percebeu bruscamente que havia alguém mais ali. A grande peça vazia e caiada, muito parecida com a sala pela qual se entrava, abria-se, do mesmo modo,  por uma porta, para o jardim e, no terraço que precedia o jardim, sentado numa poltrona de vime com um cigarro nos lábios, uma espécie de gigante de crânio nu, com um enorme ventre que esticava sua camisa aberta e sua calça de linho, observava O. Levantou-se e veio até Sir Stephen que empurrava O na sua direção. Viu então nele, dependurada na ponta de uma correntinha de bolso onde se põe o relógio, o disco de Roissy. No entanto, Sir Stephen apresentou-o cortesmente a O, chamando-o “o Comandante”, sem dar-lhe nome, e pela primeira vez desde que começou a lidar com filiados a Roissy (com exceção de Sir Stephen), teve a surpresa de ver que beijava sua mão. Entraram os três na peça, deixando a janela aberta; Sir Stephen foi até a lareira do canto e tocou a campainha. O viu sobre a mesa chinesa, ao lado do divã, a garrafa de uísque, o sifão e os copos. Não era portanto para pedir bebidas. Observou ao mesmo tempo, colocada no chão, perto da lareira, uma grande caixa de papelão branco. O homem de Roissy tinha se sentado numa poltrona de vime, Sir Stephen ficara recostado à mesa redonda, com uma perna pendente, e O, a quem mostraram o divã, tinha docilmente levantado sua saia, e sentia contra suas coxas as suaves pontas de algodão da coberta provençal. Foi Norah quem entrou. Sir Stephen disse-lhe para tirar as roupas de O e levá-las. O deixou que tirasse seu bolero, seu vestido, a cinta de barbatanas que estrangulava sua cintura, suas sandálias. Assim que a deixou nua, Norah partiu e O, retomando o automatismo da regra de Roissy, certa de que Sir Stephen só desejava dela sua perfeita docilidade, ficou de pé no meio da sala, com os olhos baixos, de tal modo que adivinhou mais do que viu, Natalie escorregar pela janela aberta, vestida de negro como sua irmã, com os pés nus e muda. Certamente Sir Stephen já tinha se explicado à respeito de Natalie; contentou-se em nomeá-la ao visitante, que não fez nenhuma pergunta, e em pedir-lhe que servisse a bebida. Assim que serviu uísque, água de Seltz e gelo (e no silêncio, só o tinido dos cubos de gelo esbarrando nos vidros fazia um ruído dilacerante), o Comandante, com seu copo na mão, levantou-se da poltrona de vime onde estava sentado enquanto se tirava a roupa de O, e aproximou-se dela. O pensou que com sua mão livre ia agarrar seu seio ou penetrar no seu ventre. Mas não a tocou, contentando-se em olhá-la bem de perto, com sua boca entreaberta e seus joelhos separados. Andou ao seu redor, atento aos seus seios, às suas coxas, às suas nádegas, e esta atenção sem uma palavra, a presença desta corpo gigantesco tão próximo, perturbava O a ponto de não saber se desejava fugir ou ao contrário, que ele a derrubasse e a esmagasse. Estava tão perturbada que perdeu o controle e levantou os olhos para Sir Stephen para procurar socorro. Ele compreendeu, sorriu, e tomando suas mãos reuniu-as atrás das costas dentro da sua. Apoiou-se nele com os olhos fechados, e foi num sonho, ou pelo menos no crepúsculo de um semi-sono de esgotamento, como quando era criança, ao sair de uma anestesia tinha ouvido as enfermeiras, que pensavam que ainda dormia, falarem dela, de seus cabelos, de sua cor pálida, de seu ventre achatado onde a penugem começava a aparecer, que ouviu o estrangeiro fazer um cumprimento a seu respeito para Sir Stephen, insistindo sobre o prazer dos seios um tanto pesados e da cintura estreita, dos ferros mais grossos, mais longos e mais visíveis do que de costume. Compreendeu ao mesmo tempo que certamente Sir Stephen teria prometido emprestá-la na semana seguinte, posto que lhe agradecia. A seguir, Sir Stephen segurou-a pela nuca, lhe dizendo suavemente para despertar e subir para esperá-lo com Natalie, em seu quarto.
Valia a pena ficar tão perturbada, e que Natalie, bêbada de alegria à idéia de ver O possuída por alguém que não fosse Sir Stephen, dançasse ao seu redor uma espécie de dança de peles-vermelhas e gritasse: “Você acha que ele vai entrar na sua boca também, O? Viu como olhava sua boca? Ah, como é feliz porque a desejam! Certamente vai chicoteá-la: por três vezes olhou as marcas que mostram que foi chicoteada. Pelo menos, durante esse tempo não vai pensar em Jacqueline”. “Mas eu não penso em Jacqueline todo o tempo”, respondeu O,  “como você é boba”. “Não! eu não sou boba”, disse a pequena, “sei muito bem que ela lhe faz falta”. Era verdade, mas não totalmente. O que faltava a O não era propriamente Jacqueline, mas o uso de um corpo de mulher, do qual pudesse fazer o que quisesse. Se Natalie não lhe tivesse sido proibida, teria possuído Natalie, e o único motivo que a impedia de violar a proibição era a certeza de que lhe dariam Natalie em Roissy, dentro de algumas semanas, e que antes seria diante dela, por ela, e graças a ela, que Natalie seria entregue. Desejava ardentemente aniquilar a muralha de ar, de espaço, de vazio, enfim, que existia entre Natalie e ela, e ao mesmo tempo usufruía da espera a que estava obrigada. Disse-o a Natalie, que sacudiu a cabeça e não acreditou. “Se Jacqueline estivesse aí, e quisesse, você a acariciaria”. “É claro”, disse O rindo. “Você vê...”, continuou a criança. Como fazê-la compreender, e valeria a pena?, que não, que não estava apaixonada por Jacqueline, nem aliás por Natalie, ou por qualquer mulher em particular, mas somente pelas mulheres como tais, como se pode estar apaixonado por sua própria imagem _ achando sempre as outras mais sedutoras e mais belas do que ela própria. O prazer que encontrava em ver uma mulher ofegar sob suas carícias, seus olhos se fecharem, em fazer com que os bicos dos seios se levantassem sob seus lábios e seus dentes, em penetrar nela com sua mão perscrutando dentro de seu ventre e entre suas nádegas _ e senti-la fechar-se em torno de seus dedos ouvindo-a gemer, fazia-a perder a cabeça _, este prazer só era tão agudo porque tornava-lhe presente e certo o prazer que por sua vez dava, quando por sua vez fechava-se sobre o que a penetrava, e gemia, com a diferença de que não concebia poder ser dada assim a uma mulher, como esta lhe era dada, mas só a um homem. Parecia-lhe, além disso, que as mulheres que acariciava pertenciam por direito ao homem a quem ela mesma pertencia, e que só se encontrava aí por procuração. Se Sir Stephen tivesse entrado quando acariciava Jacqueline, nesses dias precedentes em que Jacqueline vinha encontrá-la à hora da sesta, teria sem o menor remorso, e bem ao contrário, com um prazer total, segurado para ele, com as duas mãos, e à força, as coxas abertas de Jacqueline, se quisesse possuí-la em vez de apenas olhá-la através da divisória da clarabóia, como tinha feito. Podia ser lançada à caça, sem falta. E justamente... Nesse momento, quando novamente, com o coração batendo, pensava nos lábios delicados e tão rosados de Jacqueline sob os pêlos louros de seu ventre, no círculo ainda mais delicado e rosado entre suas nádegas, que só tinha ousado forçar por três vezes, ouviu Sir Stephen que se movimentava em seu quarto. Sabia que ele podia vê-la, no entanto não o via, e uma vez mais sentiu que ficava feliz com esta exposição constante, com esta constante prisão de seu olhar onde estava fechada. A pequena Natalie estava sentada sobre o tapete branco no meio do quarto, como uma mosca no leite, mas O de pé diante da cômoda bojuda que lhe servia de penteadeira, e acima da qual se via até a metade do corpo num espelho antigo, um pouco esverdeada e trêmula como dentro de um lago, fazia pensar nessas gravuras do fim do século passado, onde as mulheres passeavam nuas na penumbra dos apartamentos, no coração do verão. Quando Sir Stephen abriu a porta, virou-se tão bruscamente, apoiando as costas na cômoda, que os ferros entre suas pernas esbarraram num dos puxadores de bronze e tiniram. “Natalie”, disse Sir Stephen, “vai buscar a caixa de cartolina branca que ficou embaixo, na segunda sala”. Natalie, voltando, colocou a caixa sobre a cama, abriu-a e tirou, um por um, os objetos que continha, desembrulhando-os de seu papel de seda, e entregando-os ao acaso a Sir Stephen. Eram máscaras. Ao mesmo tempo capacetes e máscaras, e via-se que eram feitos para cobrir toda a cabeça, só deixando livres, além da fenda para os olhos, a boca e o queixo. Gavião, falcão, coruja, raposa, leão, touro, só havia máscaras de animais, na medida humana, mas feitos com a pele ou as penas do animal verdadeiro, a órbita do olho sombreada de cílios quando o animal tinha cílios (como o leão) e o pêlo ou as penas descendo o suficiente como para alcançar os ombros de quem as usasse. Bastava apertar uma correia bem larga, escondida sob esta espécie de capacete que caía por trás, para que a máscara se aplicasse estreitamente acima do lábio superior (tendo um orifício para cada narina) e sobre o rosto. Uma armação de cartolina modelada e endurecida mantinha sua forma rígida, entre o revestimento exterior e o forro da pele. Na frente do grande espelho onde se via de pé, O experimentou cada uma das máscaras. A mais extravagante, e aquela que ao mesmo tempo mais a transformava e lhe parecia a mais natural, era uma das máscaras de coruja (havia duas), sem dúvida porque era de penas ruivas e beges, cuja cor fundia-se com a cor da sua pele; a capa de plumas escondia quase completamente seus ombros descendo até a metade das costas e na frente até o nascimento dos seios. Sir Stephen mandou que tirasse o batom de seus lábios, depois, quando retirou a máscara, disse-lhe: “Você será então coruja para o Comandante. Mas perdoe-me, O, pois vai ser levada na corrente. Natalie, vai buscar uma corrente e pinças na primeira gaveta da minha secretária”. Natalie trouxe a corrente e as pinças, com as quais Sir Stephen abriu o primeiro elo, que passou no segundo anel que O trazia sob o ventre, fechando-o novamente. A corrente, semelhante às que se usam para amarrar os cães _, tinha um metro e meio de comprimento, terminando por uma alça. Sir Stephen disse a Natalie,  depois que O tinha novamente vestido a máscara, para segurar a extremidade e caminhar na peça diante de O. Natalie fez três vezes a volta do quarto, puxando atrás dela, pelo ventre, O nua e mascarada. “Pois bem”, disse Sir Stephen, “o Comandante tinha razão, é necessário também fazê-la depilar-se completamente. Será para amanhã. Por enquanto, fique com a corrente”.
Na mesma noite, e pela primeira vez na companhia de Jacqueline e de Natalie, de René e de Sir Stephen, O jantou nua, com sua corrente passada entre as pernas, levantada sobre as nádegas e dando a volta à cintura. Norah servia sozinha e O fugia do seu olhar: Sir Stephen, duas horas antes, mandara chamá-la.
Foram as lacerações bem frescas, mais ainda do que os ferros e a marca nas nádegas, que transtornaram a moça do salão de beleza onde, no dia seguinte, O foi depilar-se. De nada adiantou dizer-lhe que esta depilação a cera, em que se arranca de um só golpe a cera endurecida onde estão grudados os pêlos, não é menos aguda do que um golpe de chibata, e repetir-lhe, e até mesmo tentar explicar-se, se não qual era a sua sorte, pelo menos que estava feliz com ela; não houve meio de acalmar seu espanto, nem o seu horror. O único efeito das tentativas de O para acalmá-la foi que, em vez de ser olhada com piedade, como tinha sido no primeiro instante, passou a ser vista com horror. Quando terminou e estava para sair da cabine onde tinha sido aberta como para o amor, por mais gentilmente que agradecesse, por maior que fosse a quantia que deixava, sentiu que era escorraçada, mais do que simplesmente partia.
Que lhe importava? Era claro aos seus olhos que havia algo de chocante no contraste entre os pêlos do seu ventre e as plumas da sua máscara, assim como também era claro que este aspecto de estátua do Egito que lhe conferia a máscara, e que seus ombros largos, seus quadris estreitos e suas longas pernas acentuavam, exigiam que sua carne fosse inteiramente lisa. Mas só as efígies das deusas selvagens ofereciam tão alta e visível a abertura do ventre, entre cujos lábios aparecia a ponta mais fina dos lábios. E alguma vez já foram vistos furados pelos anéis? O lembrou-se da moça ruiva e roliça que encontrara na casa de Anne-Marie, e que dizia que seu senhor só se servia do anel do seu ventre para amarrá-la ao pé de sua cama, e também que a queria depilada porque só assim ficava inteiramente nua. O teve medo de desagradar a Sir Stephen que gostava tanto de puxá-la para ele segurando seus pêlos, mas se enganava: Sir Stephen achou-a sedutora, e quando vestiu sua máscara, sem pintura nos lábios do rosto e do ventre que ficaram tão pálidos, acariciou-a quase timidamente como se faz num animal que se quer conquistar. Sobre o lugar onde queria levá-la, nada tinha dito, nem sobre a hora em que deviam partir ou quem seriam os convidados do Comandante. Mas durante todo o resto da tarde veio dormir ao seu lado, e à noite pediu o jantar no quarto para ambos. Partiram no Buick uma hora antes da meia-noite, O coberta com uma grande capa escura de montanha e com tamancos de madeira nos pés; Natalie, vestida com calça e malha pretas, segurava-a por sua corrente, cuja alça estava pregada ao bracelete que usava no pulso direito. Sir Stephen guiava. A lua, quase cheia, estava alta e iluminava com grandes placas enevoadas a estrada, as árvores e as casas das aldeias que a estrada atravessava, deixando negro como a tinta da China tudo o que não iluminava. Havia ainda alguns grupos nas soleiras das portas, onde se sentia um movimento de curiosidade à passagem deste carro fechado (Sir Stephen não tinha aberto a capota). Os cães latiam. Do lado onde batia a luz, as oliveiras pareciam nuvens de prata flutuando a dois metros do solo, os ciprestes, plumas negras. Nada era verdadeiro neste país que a noite  devolvia ao imaginário, a não ser o odor dos sauge e das lavandas. A estrada subia sempre e, no entanto, o mesmo sopro quente cobria a terra. O deixou cair sua capa dos ombros. Não a veriam, não havia ninguém mais. Dez minutos mais tarde, depois de passarem ao longo de um bosque de carvalhos novos, no alto de uma colina, Sir Stephen diminuiu a marcha diante de um longo muro, até um portão que se abriu à aproximação do carro. Estacionou num pátio, enquanto fechavam a porta atrás dele; em seguida desceu, e fez descerem Natalie e O, que por sua ordem deixou no carro sua capa e seus tamancos. A porta que empurrou dava para um claustro de arcadas renascentistas, do qual só três lados subsistiam, o pátio enladrilhado era prolongado por um pequeno terraço também enladrilhado. Uma dezena de pares dançavam no terraço e no pátio, algumas mulheres muito decotadas e homens em spencer branco sentavam-se ao redor de pequenas mesas iluminadas por velas, havia uma vitrola sob a galeria da esquerda e, sob a galeria da direita, um buffet. Mas a lua dava tanta claridade quanto as velas, e, quando caiu direto sobre O, que Natalie, pequena sombra negra, puxava para a frente, os que a viram pararam de dançar e os homens que estavam sentados levantaram-se. O rapaz perto da vitrola, sentindo que alguma coisa acontecia, virou-se impressionado e parou o disco. O não avançava mais e Sir Stephen, imóvel dois passos atrás dela, esperava também. O Comandante afastou os que tinham se agrupado em torno de O trazendo tochas para vê-la mais de perto. “Quem é?” , diziam, “a quem pertence?” “A vocês, se quiserem”, respondeu, e levou Natalie e O para um canto do terraço onde havia um banco de pedra coberto por uma cambojiana e encostado num pequeno muro. Quando O já estava sentada, com as costas apoiadas ao muro, as mãos repousando sobre os joelhos e Natalie no chão, sempre segurando a corrente, afastou-se. O procurou Sir Stephen com os olhos e a princípio não o enxergou. Depois adivinhou-o, recostado num canapé, no outro canto do terraço. Podia vê-la, ficou tranqüila. A música tinha recomeçado, os dançarinos novamente dançavam. Um ou dois casais aproximaram-se dela, primeiro como que por acaso, continuando a dançar, depois um deles abertamente, a mulher puxando o homem. O fixava-os com suas olheiras de bistre sob a plumagem, muito abertas, como os olhos do pássaro noturno que representava, e tão forte era a ilusão que o que parecia mais natural, ou seja, que a interrogassem, ninguém pensava, como se ela fosse uma verdadeira coruja, surda à linguagem humana, e muda. Desde a meia- noite até a madrugada, que começou a clarear o céu ao leste por volta de cinco horas, enquanto a lua se distanciava descendo para oeste, aproximaram-se dela muitas vezes até tocarem-na, diversas vezes fizeram um círculo ao seu redor, diversas vezes afastaram seus joelhos levantando a corrente e trazendo um destes candelabros com duas ramificações em faiança provençal _ e ela sentia a chama das velas esquentar o interior de suas coxas _, para ver como sua corrente estava fixada; houve até um americano bêbado que a segurou com a mão, mas quando percebeu que tinha agarrado com toda a mão a carne e o ferro que a atravessava, sua embriaguez dissipou-se bruscamente, e O viu nascerem em seu rosto o horror e o desprezo que já vira no rosto da moça que a tinha depilado; ele partiu. Houve ainda uma moça muito jovem, com os ombros nus e um minúsculo colar de pérolas no pescoço, num vestido branco de primeiro baile para debutantes, duas rosas-chá na cintura, e pequenas sandálias douradas nos pés, que um rapaz levou para sentar-se bem perto de O, à sua direita; depois pegou sua mão e forçou-a a acariciar os seios de O que estremeceram sob a mão leve e fresca, e a tocar-lhe sob o ventre, tanto o anel, como o buraco por onde passava o anel; a jovenzinha obedecia em silêncio e, quando o rapaz lhe disse que faria o mesmo, não teve nenhum movimento de repulsa. Mas mesmo dispondo assim de O, e mesmo tomando-a assim como modelo ou como objeto de demonstração, nenhuma vez lhe dirigiram a palavra. Era, então, de pedra ou de cera, ou talvez uma criatura de outro mundo e pensava-se que era inútil falar-lhe, ou quem sabe não ousavam? Foi apenas quando já tinha amanhecido totalmente, e quando todos os dançarinos tinham partido, que Sir Stephen e o Comandante, despertando Natalie que dormia aos pés de O, fizeram o levantar-se, conduziram-na ao meio do pátio, tiraram sua corrente e sua máscara e, derrubando-a sobre uma mesa, possuíram-na alternadamente.



Num último capítulo que foi suprimido, O voltava a Roissy, onde Sir Stephen a abandonava.
Existe um segundo fim para a história de O. É que, vendo-se a ponto de ser abandonada por Sir Stephen, preferiu morrer, no que ele consentiu.